<p>A seguir ao jantar, antes de saír de casa, o militar que iria controlar o Quartel-General do Porto disse para a mulher: "Vai passar--se qualquer muito grave esta noite. Ouve a telefonia, o sinal vai ser a Grândola". É a memória de Lúcia da Costa Girão, a mulher do general Carlos Azeredo. </p>
Corpo do artigo
"Disse-me para estar atenta à telefonia e que lhe telefonasse quando ouvisse a Grândola. Ouvi e telefonei-lhe. Ele usou o código combinado e disse que 'o cunhado estava melhor, que está muito bem e que já tinha ultrapassado a crise mais grave'. Desligou e fiquei em pânico porque já não poderíamos voltar a falar".
Nascida no Douro, de família conservadora, "na qual as meninas não deviam estudar fora de casa", Lúcia, que gostaria de ter sido psicóloga, tem agora 78 anos, quatro filhos, 12 netos e recorda os sustos da noite que há 36 anos antecedeu "o dia mais feliz". O primeiro susto foi o toque do telefone. "Era um amigo do meu marido, que tinha sido adido militar do Américo Tomás. Não acreditei na coincidência e temi que ele quisesse saber o que estava a ser preparado. Fiz de conta que estava tranquila e menti quando me perguntou pelo Carlos: 'Está em manobras, mas deve estar quase a chegar'". Ainda mal respirava de alívio, outro toque, o da campainha da porta: "Era um padre, amigo do Sá Carneiro. Fiquei aterrada e acabei por confidenciar-lhe que ia passar-se alguma coisa e pedi que saísse". Os filhos já deitados, Lúcia só sossegou quando novo toque de campainha lhe trouxe voz amiga a dizer que estava tudo calmo e que não tinha havido resistência. "Aí serenei, mas o meu marido só me telefonou na manhã seguinte, eufórico. Fiquei radiante, os jovens já não precisariam de ir para a guerra".
Uma "decepção enorme" chegou quando "o marechal Spínola mandou o Carlos para a Madeira, onde foi o "carcereiro" de Marcelo Caetano, que, conta Lúcia, temia que lhe acontecesse o mesmo que à família imperial russa. O desconsolo veio depois, da rua. "Não tínhamos sonhado que o poder pudesse vir a cair na rua. Mas... valeu a pena!".