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José Leite Pereira - Professor, o que vai guardar como pior memória de 2010?
Alexandre Quintanilha - Em primeiro lugar, era impossível não falar na crise económica, que está a afectar tantas pessoas e tantos países. Não começou em 2010, mas continuou, causando impactos muito importantes. O segundo são os fundamentalismos que estão a crescer um pouco por toda a parte, e não só os islâmicos, os judaicos e os cristãos também. Na América, mais de metade da população não acredita na evolução; em Israel, os colonatos continuam a crescer. E o impacto dos fundamentalismos está a ser cada vez maior nos países monoteístas. Em terceiro lugar, a saúde. As questões ligadas à nutrição, em que há um sexto da população mundial que come a mais, um sexto que come a menos e um quarto que não come apropriadamente. As doenças que daí advêm e os impactos sobre a saúde da população são enormes. As doenças ligadas ao envelhecimento, que estão a afectar cada vez mais pessoas, porque se vive até mais tarde. E os vários terramotos que assolaram o planeta, o vulcão na Islândia, que parou o tráfego aéreo, a explosão de petróleo na plataforma do Golfo do México, que teve consequências dramáticas, as inundações em vários sítios, os alagamentos tóxicos...
JLP - Estava a ouvi-lo e pensava que algumas coisas que enumerou, nomeadamente as intolerâncias e os fundamentalismos, não são males de 2010, vêm de trás, o que faz supor que não encontramos solução...
AQ - É verdade que, em situações de crise e em situações difíceis, as pessoas tentam-se fechar mais, os nacionalismos aumentam, a necessidade de nos afirmarmos como diferentes do outro para termos algumas vantagens também se acentua. Isso é uma das consequências da crise económica, mas também da crise do conhecimento, são as várias crises de que falámos no passado.
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JLP - Carvalho da Silva, o que não quer recordar de 2010?
Carvalho da Silva - Algumas questões fundamentais já foram colocadas. O que me choca em 2010 é a continuação do agravamento da injustiça e da desigualdade, é um ano marcado pela transferência das dívidas privadas, muitas delas autênticos roubos provocados pelo funcionamento deste fundamentalismo financeiro, que foram transferidas para os orçamentos de Estado e, cinicamente, os povos, que foram já explorados na primeira fase, a serem convocados agora para pagarem esta factura.
JLP - Também em Portugal?
CS - Sim, e de uma forma muito chocante. Por outro lado, são os bloqueios do tipo de sociedade em que vivemos que obrigam a pensar muito. A crise é apenas a expressão de um caminho que vem de trás, não é nenhum vírus que surgiu de um momento para o outro. Vemos agora dimensões no plano financeiro, no plano económico, na disfunção do funcionamento das instituições, no plano energético, que depois provocam catástrofes no plano ecológico e ambiental, no plano da biologia e da biotecnologia, das formas como se caminha e das opções que se fazem, que nos deixam muitas interrogações. Ligado a tudo isto, estão a desenvolver-se rupturas de solidariedade perigosas, em particular entre gerações , o que pode ser o pré-anúncio de desastres maiores. No meio disto, e como sindicalista, não posso deixar de referir o que, há poucos dias, a OIT punha em relevo, que é a continuada diminuição da retribuição do trabalho, com uma parte significativa do valor que era atribuído aos trabalhadores a ser transferida para o lado dos lucros, uma parte dos salários do trabalhador de nível médio a ser transferida para trabalhadores altamente colocados e a desprotecção daqueles que ganham menos. Tudo isto está a provocar desigualdades maiores e perigos de uma desvalorização do trabalho que choca com a própria evolução do sistema. Somos desafiados também a discutir o nosso estilo de vida.
JLP - Vamos deixar as coisas más e falar das boas. 2010 teve-as também, com certeza...
AQ - O mais importante que tem vindo a acontecer é o fortalecimento da noção de uma sociedade baseada no conhecimento, não em crenças, mas na dúvida metódica sobre o que se sabe e o que não se sabe, numa certa humildade em relação àquilo que julgamos saber e que julgamos querer fazer. A aposta no conhecimento, a aposta na ideia de que o nosso futuro será construído por nós próprios, através das capacidades que desenvolvemos, tem sido uma mensagem crescente em Portugal.
JLP - Esse tem sido, aliás, o seu trabalho...
AQ - Contribuo muito pouco para esse processo, mas tenho sempre vontade de desmistificar algumas das noções que são trazidas a público - às vezes com enormes esperanças, às vezes, com enormes medos - e tentar contextualizar essas questões. Também tem havido, em Portugal, um movimento na direcção das energias sustentáveis que é muito positivo. A nível internacional, a possibilidade de chegarmos a um tratado sobre armas nucleares, que Obama tentou desenvolver, é fundamentalíssimo. Não se percebe muito bem como é que ainda não foi aceite. Há menos pessoas a morrerem de determinadas doenças, como a Sida, apesar de uma parte da população mundial ainda não ter acesso, por razões financeiras, a novos tratamentos. E, em tom de graça, o desaparecimento de Tony Blair e de Bush dos ecrãs da televisão é uma notícia muito positiva em relação a 2010 (risos).
JLP - Carvalho da Silva, alguma observação em relação àquilo que foi bom em 2010?
CS - Em Portugal, o exercício de memória em algumas dimensões, por exemplo, relativa ao centenário da República, é importante para nos lembrar valores e ajudar a produzir alguma reflexão com sentido de futuro. Também nesse plano, e puxando a brasa à minha sardinha, é importante o que estamos a fazer do ponto de vista de exercício de memória do movimento sindical. Vamos ter algumas publicações e tivemos um debate que pode ter efeitos. Ainda recentemente, teve impacto, na forma como se realizou, a greve geral e, acima de tudo, a mensagem solidária, não apenas centrada em questões imediatas dos trabalhadores, mas procurando falar do futuro, das novas gerações. Esta evocação dos 40 anos da CGTP está a levantar algumas destas questões. Mas há mais, como o avanço na legislação do casamento de pessoas do mesmo sexo. São sinais de abertura da sociedade, que tem que ser mais multicultural, mais multilateral, mais universalista, tomando o conhecimento mas também a interacção entre as pessoas em novas dimensões. É interessante, por exemplo, o sinal dado no Irão com a suspensão da condenação à morte de uma mulher por um problema de relacionamento no seio da família.
JLP - 2011 está à porta, o ano começa praticamente com eleições presidenciais. Professor, não parece que este debate das presidenciais seja muito mobilizador, pois não?
AQ - Tenho de confessar, talvez até com alguma vergonha, que não tenho seguido o debate, porque nenhum dos candidatos me entusiasma realmente. Provavelmente, não irei votar em nenhum deles, não tenho ainda a certeza. Mas em relação a 2011 há coisas que gostava de ver mudadas no Mundo. Já foi aqui referida a posição das mulheres no planeta, que tem muito a melhorar. Portugal, neste caso, é uma excepção na Europa, porque tem muitas mulheres participativas a vários níveis. Demos um salto muito grande. Ao pensar nisso, não sei se o 25 de Abril não teve mais efeito nas mulheres, que se sentiram mais libertadas daquele jugo paternalista anterior, do que nos homens. A posição das mulheres está a ser enfraquecida, os direitos individuais e os direitos humanos, em muitos sítios do planeta, também têm muito a melhorar. Gostaria de ver as diferenças entre os ricos e os pobres a diminuir e não a aumentar. Gostaria que o conhecimento fosse usado de uma forma mais inteligente e que não fosse só para benefícios económicos, que também são importantes, mas há muitas formas de dar trabalho e de pôr as pessoas em desafios que se desenvolvam na direcção de um planeta mais sustentável, porque estamos a caminhar numa direcção que é claramente insustentável. Já temos gente a mais, gastamos energia a mais, gastamos água a mais...
JLP - Carvalho da Silva, quais são os seus desejos para 2011 e a sua visão sobre as presidenciais?
CS - Os meus desejos são que se prossiga e amplie a atenção para factores mais intrínsecos ao ser humano e que, utilizando as capacidades de que hoje dispomos em vários campos, se façam avanços. Há referências importantes em relação ao papel das mulheres, ao aumento da esperança de vida, em relação a esta sociedade que, por exemplo, na Europa, tem que ter uma atenção especial aos direitos, por causa do processo migratório, porque é por aí que se vai caminhar. Outra, é ver até que ponto os povos vão aguentar a tirania do neo-liberalismo. Vamos ver se as lutas sociais têm um sentido positivo ou se estão ainda num quadro de retrocesso ou de regressão, ver o que é o futuro destes programas de estabilidade e crescimento, de ajuda, que são uma mentira absoluta, pois apenas sacrificam os povos. Vamos ver como caminha o modelo social, o destino do euro, o projecto europeu, que também é uma interrogação. E, no plano interno, tudo isto tem as suas dimensões. As presidenciais estão muito pobres. De certa forma, nesta fase, estão a servir de tampão e de nuvem a problemas mais graves que deviam estar a ser tratados e não estão. O drama pode ser nós termos em Portugal, nos próximos anos, um combate pela procura e construção de caminhos novos com confronto de posições e necessidade de convergências alargadas, mas termos na Presidência da República alguém que se pode tornar um travão no próprio processo de mudança. E gostava de relevar uma ideia já referida por Alexandre Quintanilha, que é a evolução do conhecimento, no sentido de uma valorização da inovação social. A dimensão de conhecimentos que temos e as possibilidades da sua utilização fazem-nos corar de vergonha, pela falta de humanismo com que se continua a viver em sociedade.
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As Conversas com Norte regressam dia 6 de Janeiro, com Alexandre Quintanilha e Alberto Castro