O segredo de justiça já levou à condenação de Portugal, em dois processos, por violação da liberdade de expressão. Estavam em causa informações sob segredo de justiça, mas cujo interesse público justificava a sua publicação, concluiu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
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O primeiro caso é o de uma notícia do "Público", de Eduardo Dâmaso (1998), que revelava a acusação do deputado do PSD Nuno Delerue, por crimes fiscais e outros. Dâmaso foi alvo de condenação do Tribunal de Esposende, confirmada na Relação de Guimarães.
Mas o TEDH contrariou aqueles tribunais. "O interesse da publicação litigiosa prevalecia, no caso, sobre o fim, também legítimo, de preservar o segredo de justiça", decidiu, argumentando: "O papel dos jornalistas de investigação é, precisamente, o de informar e de alertar o público quanto a fenómenos tais como os visados pelo artigo litigioso. Não se lhes poderia impedir de publicar tais artigos logo após ter ficado em poder das informações".
O interesse geral da informação sobre figuras públicas também foi invocado pelo TEDH, quando absolveu o jornalista António Laranjeira. Este, no "Notícias de Leiria", revelara, em 2000, suspeitas sobre um médico, dirigente local do PSD, por abuso sexual de uma paciente.
Dâmaso e Laranjeira não prejudicaram as investigações, defendeu o TEDH. No caso do primeiro, também se referiu longamente à presunção de inocência, outro princípio do segredo de justiça, e lembrou que Dâmaso já publicara outros artigos sobre o tema, um dos quais originara o inquérito contra Nuno Delerue (ND). O artigo litigioso, de resto, "não tomava posição sobre a eventual culpabilidade de ND, limitando-se a descrever o conteúdo da acusação", desvalorizou o TEDH.
Condenações
"Candidato boçal"
"Nem nas arcas mais arqueológicas e bafientas do salazarismo seria possível desencantar um candidato ideologicamente mais grotesco e boçal, uma mistura tão inacreditável de reaccionarismo alarve, sacristanismo fascista e anti-semitismo ordinário", escreveu Vicente Jorge Silva (VJS), em editorial do "Público" de 1993, sobre a opção do CDS por candidatar Silva Resende à Câmara de Lisboa. O jornalista foi alvo de queixa-crime, por difamação, e, em 95, absolvido. O "Público" fundamentara o editorial com excertos de crónicas de Silva Resende publicadas no "Jornal do Dia", argumentou o tribunal. Mas o queixoso recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa e VJS seria condenado, por abuso de liberdade de imprensa. O Tribunal Constitucional negou provimento a um recurso de VJS, que, em 97, queixar-se-ia ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). Em 2000, Portugal foi condenado, a primeira vez, por violar a liberdade de expressão. Para o TEDH, os escritos de VJS eram "polémicos", mas não "um ataque pessoal gratuito", porque o autor dava "uma explicação objectiva". "A invectiva política extravasa, por vezes, para o plano pessoal", mas "estes são os riscos do jogo político e do debate livre de ideias, garantes de uma sociedade democrática", refere o TEDH.
Caso com pena de prisão
O investigador Leonel Azevedo publicou, em 2001, um livro sobre "Os jardins do Paço Episcopal de Castelo Branco", onde escrevia que os trabalhos anteriores sobre o assunto transpiravam "mediocridade". Criticou, em concreto, a obra da académica Maria Forte Salvado, que se viria a queixar de ter sido difamada.
Em 2003, o Tribunal de Castelo Branco condenou o arguido a pena de um mês de prisão, suspensa por ano e meio, pela "forma perfeitamente gratuita e injustificada" como criticara o "laconismo simples e triste" da obra de Salvado, a quem aconselhava "um assento demorado nos bancos 'primários' do estudo da literatura e da estética". A condenação seria confirmada, com uma pena mais leve, pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
Azevedo queixou-se ao TEDH, que condenaria, em 2008, o Estado português. Sustentou que Maria Forte não era uma "simples particular" e o debate em questão tinha interesse público. Além disso, Azevedo não visara tanto a autora, mas, "principalmente", a suposta qualidade da sua obra. Sancionar estas críticas seria, segundo o TEDH, "entravar a liberdade de que os investigadores devem beneficiar no âmbito do seu trabalho científico".
Jornalista contra jornalista
Em 1999, o director de "A Voz do Nordeste", César Urbino, escreveu que a nomeação do líder do PS/Bragança, Fernando Calado, para o cargo de coordenador educativo distrital premiava a sua "súbita devoção socialista", pois o seu currículo resumia-se a uma "curta" experiência como delegado de cursos nocturnos numa escola.
"A Voz do Nordeste, mais uma vez, mente descaradamente em relação ao nosso colaborador Fernando Calado", reagiu Inocêncio Pereira, do "Mensageiro de Bragança". Urbino responderia que Inocêncio era incapaz de distinguir o plano pessoal do público, garantindo: "Qualquer tentativa de nos silenciarem, seja por que métodos forem, mesmo os típicos dos mafiosos, só poderá ter efeitos contraproducentes".
Inocêncio queixou-se de difamação e o Tribunal de Bragança condenou o arguido. Urbino só ganharia o litígio em 2005, no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Este frisou que os factos podem provar-se, mas os juízos de valor "não se prestam a uma demonstração sobre a sua exactidão". "Típicos de mafiosos" é, por isso, "insusceptível de ser provado", concluiu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Pinto da Costa e os árbitros
O antigo programa da SIC "Os donos da bola" passou, em 1996, uma entrevista do jornalista José Manuel Mestre ao secretário-geral da UEFA. E, no diálogo de ambos, aquele recordava, sobre o líder do FC Porto, Pinto da Costa: "É ao mesmo tempo presidente da Liga e patrão dos árbitros e (…) senta-se no banco dos jogadores". Observou ainda que Pinto da Costa insultara dois árbitros, num jogo que o Porto perdera. Mestre foi condenado por difamação, após a queixa de Pinto da Costa. O tribunal não deu os insultos por provados, nem que Pinto da Costa aproveitasse as suas múltiplas funções para influenciar arbitragens. Faltara "contenção, moderação e urbanidade" ao jornalista. Em recurso, o Tribunal da Relação confirmou a condenação, em 2002, porque a forma como o jornalista se referiu a Pinto da Costa podia "criar dúvidas ao entrevistado, como a todo o público". Mestre recorreu para o TEDH, que condenou o Estado português. Sustentou que "as reportagens de actualidade centradas em entrevistas, editadas ou não, representam um dos meios (…) sem os quais a imprensa não poderia preencher o seu indispensável papel de "cão de guarda". "Os motivos fornecidos pelas jurisdições nacionais para condenar os requerentes não podiam considerar-se suficientes", concluiu.
"Arrotos espirituais" sem relevo criminal
Em 2006, Portugal foi condenado no caso Roseiro Bento. Este era presidente da Câmara de Vagos (CDS) e, em assembleia municipal, afirmou que o vereador António Moura (PSD) dava "arrotos espirituais com hálito político bolorento". Por cá, Roseiro Bento foi condenado por difamação, mas o TEDH desvalorizou: "São os riscos do jogo político e do livre debate de ideias, garantas de uma sociedade democrática".
Tribunais ignoram alegadas mentiras
Em 2007, Portugal foi condenado no caso Almeida Azevedo. Este era líder do PSD/Arouca quando, no jornal "Defesa de Arouca", chamou "mentiroso" ao presidente da Câmara, Armando Oliveira. O arguido quis fazer prova da acusação, mas o Tribunal de Arouca não achou necessário, porque o artigo era "globalmente ofensivo", e condenou-o por difamação. Já o TEDH referiu o interesse público do assunto que suscitara a acusação, considerando que os tribunais nacionais deveriam ter analisado os factos que levaram Azevedo a chamar mentiroso ao outro.
Aborto e o saco azul de Carnaval
Em 2009, Portugal foi condenado duas vezes. A primeira, porque o Ministério da Defesa liderado por Paulo Portas (2004) proibiu a entrada do barco holandês Borndiep, que pretenderia fazer debates sobre o aborto. A "Woman on Waves" recorreu à justiça portuguesa, mas só lhe foi dada razão em Estrasburgo. O outro caso foi o de Alves da Silva, de Mortágua, que fez desfilar, no Carnaval, um boneco que figurava o presidente da Câmara local, Afonso Abrantes, com alusões a um saco azul e a compadrio nas contratações da autarquia.
