A um mês do primeiro bebé proveta nacional fazer 26 anos, Portugal discute, esta quinta-feira, novas regras para o acesso à procriação medicamente assistida. Após o vazio legal de 19 anos, até 2006, em que surgiu uma das lei mais restritivas da Europa, o mais provável é que pouco mude aquando da votação, na sexta-feira.
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Quatro propostas estão em cima da mesa, esta quinta-feira. Do Bloco de Esquerda ao PSD, incluindo duas do PS, o objectivo passa por corrigir uma legislação com cinco anos, que surgiu depois de o país ter estado sem qualquer legislação, que regulasse tais técnicas de reprodução, 19 anos sobre o nascimento de Carlos Miguel - o primeiro bebé proveta.
Os bloquistas propõem que todos os casais (hetero ou homossexuais) e todas as mulheres independentemente do estado civil acedam à procriação medicamente assistida (PMA), alterando o actual impedimento - que apenas estabelece o acesso a casais heterossexuais, com a mulher a necessitar do consentimento do companheiro.
Que a infertilidade deixe de ser o diagnóstico exigível para aceder à PMA, passando a ser encarada como método alternativo à procriação, é outra das propostas do BE, onde consta ainda o recurso à maternidade de substituição - conhecida como "Barriga de Aluguer" - mas apenas por razões clínicas (ausência de útero)
A segunda proposta a surgir pertence ao PS, elaborada por um grupo onde se inclui Maria de Belém, a ex-presidente da Comissão de Saúde, que elaborou a legislação em vigor, em 2006. O texto somente integra o acesso à maternidade de substituição, de forma a diminuir aquilo que classifica de "prática clandestina que se verifica em relação às chamadas "barrigas de aluguer"', lê-se no documento.
Trata-se de uma proposta que mantém a PMA destinada aos casais heterossexuais, abrindo a excepção da maternidade de substituição, de forma gratuita, para as mulheres que clinicamente não possam de outra forma aceder a uma gravidez.
O ex-ministro da Agricultura, hoje coordenador socialista para a área da saúde, António Serrano, defendeu que se trata de uma proposta que incorpora as recomendações do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) - cujo presidente, juiz Eurico Reis, defende que os homossexuais deveriam aceder a tais técnicas reprodutivas.
Mais liberal e de dentro do PS, indo ao encontro da legislação que existe na maioria dos países europeus, há uma segunda proposta, elaborada pelos deputados Pedro Alves, Isabel Moreira, Rui Duarte, Antónia Almeida Santos e Elza Pais.
Quase num decalque da lei espanhola, os cinco deputados estabelecem que podem recorrer à PMA qualquer tipo de casais (hetero ou homossexuias) e mulheres sós, a maternidade de substituição passaria a ser permitida, gratuitamente, e aborda algo que só a Grécia legislou de forma clara: o uso do sémen do marido ou homem falecido por quem estivesse com ele casado ou em união de facto.
Quer na proposta do BE, quer nesta segunda do PS (onde não há obrigatoriedade de existir um casamento ou uma união de facto) quando se refere "ausência de útero" para aceder à maternidade de substituição não se salienta se isso pode abranger mulheres transexuais. Contudo, de acordo com o deputado socialista Pedro Alves isso não está previsto no seu projecto.
Por último, o PSD defende um projecto em tudo semelhante à primeira proposta dos socialistas - apenas aborda a maternidade de substituição. Mas estabelece um artigo claramente impeditivo, que não existe na actual lei: "Só as pessoas casadas que, sendo de sexo diferente....podem recorrer a técnicas de PMA".
Fertilidade das mais baixas
Esta discussão surge numa altura em que, segundo o Relatório de Saúde Reprodutiva 2011, publicado na Revista Europeia de Contracepção e Saúde Reprodutiva, os valores de fertilidade mais elevados registam-se nos países europeus onde a legislação não conta com os entraves que existem em Portugal.
No que toca à fertilidade nacional, a taxa é da mais baixas (1,37). Atrás, só mesmo a Hungria, Roménia e Eslováquia.
Portugal volta a não sair bem no retrato na família a 27 (ver cenário europeu) quando se fixa no último lugar no que concerne aos resultados da aplicação das técnicas de reprodução assistida: 0,9. Sublinhe-se que a Dinamarca tem o valor mais elevado - 4,1 - e a vizinha Espanha, aonde as lésbicas portuguesas continuam a rumar, apresenta resultados de PMA de 3,6.
Por cá, o sector privado tem facturado uma média de 10 milhões de euros anualmente com tratamentos dados a casais inférteis, tendo em conta as longas listas nas unidades reprodutivas públicas - onde a espera pode atingir dois anos. Uma realidade de 29 centros, dos quais são 10 públicos - instalados em unidades hospitalares.
Consenso sobre técnicas reprodutivas foi sendo difícil de atingir, pelo menos nos últimos 13 anos.
Em 1999, o então Presidente da República, Jorge Sampaio, vetou uma lei, devido à forte contestação médica. Ainda no seu primeiro mandato, Sampaio deixou Portugal num oásis legislativo, perante um Governo socialista que não mais tocou no assunto e uma Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida que somente se reuniu uma vez por ano, até 2003, sem apresentar qualquer proposta alternativa à Assembleia da República.
Em 2003, a primeira força política a avançar foi o Bloco de Esquerda, numa altura que a Sociedade Portuguesa de Medicina Reprodutiva apresentou alguns princípios do que viria a ser a legislação a surgir muito mais tarde. Já então os bloquistas defendiam aquilo que agora apresentam na sua proposta: que mulheres sós pudessem recorrer às técnicas da PMA.
Até porque, ao contrário do que se pensa, a legislação portuguesa não pune a existência de filhos com pais incógnitos, já que apenas é levantado um processo para identificar o pai - quando o Ministério Público não consegue, a acção é arquivada e o espaço fica em branco no registo da criança. O mesmo aconteceria com as mulheres sós que recorressem à PMA - arquivamento do processo.
Três anos depois, o receio de um possível veto de Cavaco Silva terá sido um dos motivos para que se construísse uma lei à luz de uma família heterossexual, biparental, com mulheres tuteladas - com a devida autorização do companheiro para recorrer à PMA.
Contudo, a então presidente da Comissão Parlamentar de Saúde, a socialista Maria de Belém, assegurou que a maternidade de substituição não seria alvo de procedimento criminal se fosse uma irmã ou até uma mãe da mulher estéril a emprestar o útero para a gestação.
Dando um passo em frente, a Ordem dos Médicos aprovou, em 2008, um novo código deontológico, onde permitia aos profissionais a assistência de "barrigas de aluguer".