Automóveis sem condutor emergem do reino da ficção científica para a estrada
As tecnologias de condução automatizada estão a avançar constantemente com a promessa de reduzir os acidentes rodoviários.
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É um dia normal na cidade de Hamburgo, no norte da Alemanha, onde inúmeros automóveis circulam pelas ruas e peões atravessam nos cruzamentos. No meio de toda a azáfama, um veículo avança sem as mãos do condutor no volante ou os pés nos pedais.
Não se trata de uma proeza arriscada, mas sim dos testes finais de tecnologia concebidos pelo projeto L3Pilot, financiado pela União Europeia. Nele, os investigadores desenvolveram e experimentaram a eletrónica para automóveis sem condutor em estradas e autoestradas urbanas. Realidades rodoviárias
"É muito importante testar veículos automatizados em condições reais", disse Aria Etemad, que coordenou o L3Pilot e é investigador no fabricante alemão de automóveis Volkswagen. "Deixá-los conduzir em ambientes artificiais não é suficiente. Precisamos de ver se conseguem lidar com a complexa e confusa realidade da estrada".
Os automóveis sem condutor têm passado por muitas expectativas nos últimos anos. Empresas tecnológicas americanas como a Google e a Uber investiram milhares de milhões em investigação, perseguindo uma visão de ficção científica de automóveis que transportam pessoas sem condutores humanos.
Esses sonhos foram por vezes interrompidos, uma vez que os automóveis sem condutor se revelaram mais complexos de conceber do que se pensava anteriormente. Ocasionalmente ocorreu um episódio trágico, tal como a morte de uma mulher americana em 2018, atropelada por um automóvel de testes Uber sem condutor.
No entanto, investigadores fora da ribalta, como Etemad, estão a obter resultados reais. E nos próximos anos, é provável que mais veículos com graus de autonomia mais elevados apareçam nas estradas de toda a Europa. A esperança é que estes automóveis ajudem a UE a atingir um objetivo de reduzir a zero o número de mortes na estrada até 2050, em relação aos 19 900 do ano passado. O número de 2021 marcou um aumento de 6% em relação a 2020. Se 30% dos veículos em autoestradas utilizassem tecnologias de condução automatizada, os acidentes rodoviários diminuiriam quase 15%, de acordo com as previsões do L3Pilot. Além disso, os veículos automatizados cumprem a promessa de reduzir tanto os engarrafamentos (tornando o transporte rodoviário mais eficiente) como o stress do condutor. "Precisamos de um pouco mais de tempo", disse Etemad, que agora coordena um projeto de seguimento da UE chamado Hi-Drive. "Mas num futuro próximo, cada vez mais automóveis terão tecnologia de condução automatizada".
Mudança de velocidades
Todo o processo será evolutivo, com diferentes níveis de automatização que se apresentam em diferentes modelos de automóveis em várias fases.
Existem seis níveis de autonomia automóvel sob uma classificação comum da indústria. O nível zero é um automóvel padrão sem automatização, enquanto que o nível cinco representa automatização total: um veículo que pode conduzir sozinho em todas as condições possíveis.
Eternad explica que os níveis um e dois já são uma realidade, com o primeiro incluindo o controlo de cruzeiro adaptativo e o segundo estendendo-se à assistência em engarrafamento.
Alguns automóveis existentes já conduzem e travam sozinhos, por exemplo em condições de tráfego relativamente simples, como numa autoestrada ou em congestionamento.
Em certos casos, os condutores podem até retirar as mãos do volante ou os pés dos pedais, mantendo o controlo final (precisando de estar sempre prontos para assumir o controlo). Os dados dos sensores e câmaras ligadas ao carro são introduzidos num sistema de software, que frequentemente utiliza inteligência artificial para tomar decisões de condução.
Os fabricantes de automóveis estão agora a tentar alargar a autonomia ao nível três. "É como o nível dois, mas no nível três o condutor pode fazer atividades secundárias", disse Etemad. "Pode ver um vídeo, por exemplo. Apenas quando o sistema o solicita, o condutor deve retomar o controlo".
Sinais do utilizador
David Ertl, do Gabinete Europeu da Federação Automóvel Internacional (FIA), diz que os próprios automobilistas estão a contribuir tanto com o seu entusiasmo como com o seu ceticismo em relação a todo o empreendimento, aumentando a fasquia da investigação.
"Poderão haver benefícios claros para os utilizadores de automóveis, tais como a melhoria da segurança rodoviária", disse. "Mas continuam inseguros sobre o quão segura é realmente a condução automatizada". A FIA foi parceira no L3Pilot e é parceira no Hi-Drive, representando os interesses dos condutores. A segurança e a confiança dependerão em última análise não só da tecnologia, mas também de fornecer aos condutores informações suficientes sobre as funções automatizadas. Os futuros testes de licença de condução devem incluir formação em condução automatizada, disse David Ertl.
A transição do nível dois para o três é um grande passo. Os sistemas automatizados devem ser suficientemente seguros para permitir aos condutores canalizar a sua atenção para outras tarefas. Aria Etemad contou-nos que os testes L3Pilot envolveram um total de 750 pessoas, no papel de condutores-supervisionadores ou de passageiros, em sete países, incluindo a Alemanha, Itália e Suécia.
Nos percursos experimentais, o automóvel conduziu autonomamente, com um condutor experiente sentado atrás do volante, pronto a assumir o comando sempre que necessário.
Ângulos mortos
Verificou-se que as atuais tecnologias de condução autónoma ainda têm uma série de situações que não conseguem resolver.
Por exemplo, quando um carro automático se aproximava de algumas obras na estrada devolvia o controlo ao condutor. Desafios como este estão agora a ser abordados pelo projeto Hi-Drive, que decorre até meados de 2025.
Este tipo de situações inesperadas na estrada estão entre os principais obstáculos ao desenvolvimento de veículos sem condutor. "É por esta razão que muitos fabricantes hesitam em colocar estes sistemas no mercado", disse Etemad. "Temos de pensar em todas as situações possíveis que o seu automóvel precisa de cobrir. E isso não é fácil".
Ambições mais elevadas
Para níveis ainda mais elevados de autonomia, será necessária mais paciência. "O nível quatro pode chegar ao mercado como táxis-robô ou vaivéns", disse Etemad. "São altamente autónomos, mas as velocidades a que operam são baixas, e os locais em que conduzem são bem definidos. Tenho quase a certeza de que antes do final desta década os veremos em funcionamento nas áreas metropolitanas".
E o quinto nível que envolve a condução autónoma de um automóvel em todo o lado, desde pequenas estradas rurais e autoestradas até ao centro das cidades? Poderá ser um sonho irrealizável destinado a permanecer no reino da ficção científica? Aria Etemad pensa que sim. Explica que os custos relacionados seriam proibitivos num futuro próximo - tanto para a tecnologia automóvel como para as infraestruturas necessárias, tais como sensores capazes de informar um veículo sobre o que está a acontecer na estrada.
"Não seria acessível, simplesmente", disse, "com o nosso conhecimento e tecnologia atuais, devemos concentrar-nos nos níveis três e quatro porque é aí que reside o verdadeiro potencial".
A investigação neste artigo foi financiada pela UE. Este material foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.