Embora não sejam essencialmente úteis para indicar as horas, os relógios nucleares poderiam permitir aos cientistas testar a compreensão fundamental da humanidade sobre como a realidade funciona.
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Thorsten Schumm é um relojoeiro, mas não do tipo que se senta numa bancada de trabalho coberta de molas e engrenagens, e com uma lupa enfiada no olho. Não, Schumm está a fazer um relógio que se encontra numa liga completamente diferente.
Os relógios atómicos podem parecer bastante familiares - mas se a investigação de Schumm for bem planeada, pode resultar num relógio nuclear. E mais do que apenas indicar as horas, poderia ajudar a desvendar alguns dos segredos mais bem guardados do universo.
"Isto é ainda um sonho", disse Schumm, professor na Universidade de Tecnologia de Viena, na Áustria. "Ninguém sabe como fazê-lo".
O professor pretende mudar isso e, no processo, esclarecer algumas das forças fundamentais da natureza.
Fração de segundo
Um relógio pode ser baseado em qualquer coisa que oscile a intervalos regulares e que possa ser lida. Os primeiros relógios eram mecânicos. Atualmente, muitos relógios de pulso utilizam as oscilações eletromecânicas de um cristal de quartzo.
Mas a tecnologia dos relógios evoluiu bastante nos anos 50 do século XX com o aparecimento dos relógios atómicos.
Os átomos são constituídos por um núcleo rodeado por uma nuvem orbital de eletrões. O funcionamento de um relógio atómico depende das "transições quânticas" que estes eletrões fazem.
Funciona da seguinte forma: os eletrões podem absorver um pacote de energia, que os move de um "estado fundamental" para um "estado excitado" de energia superior. Depois podem voltar ao estado fundamental, libertando esse pacote de energia durante a descida.
Estas transições de energia ocorrem com uma frequência particular que pode ser utilizada para a cronometragem. Tudo isto acontece de forma surpreendentemente rápida.
Por exemplo, um segundo é oficialmente definido como 9 192 631 770 oscilações de um pacote de energia que excita um átomo de césio-133. Os relógios atómicos são muito precisos, pois produzem uma grande quantidade de oscilações ou tiquetaques. Portanto, se o mecanismo de leitura falhar um ou dois deles, normalmente não constitui um grande problema quando há mais de 9 mil milhões por segundo.
Os relógios nucleares são diferentes. O funcionamento não dependeria dos eletrões, mas sim das vibrações do próprio núcleo. Estas são muitas vezes mais rápidas do que os tiquetaques das transições dos eletrões.
Mas, como diz Schumm, o trabalho de colocar um relógio nuclear em funcionamento continua.
Feliz coincidência
Schumm interessou-se em resolver este mistério nuclear um pouco por acaso.
Acontece que um isótopo raro do elemento tório-229 é, sem dúvida, o material mais fácil a partir do qual um relógio nuclear pode ser construído. Isto porque se pensa que tem os tiquetaques mais lentos de qualquer núcleo. Além disso, o instituto onde Schumm trabalha é um dos poucos locais que pode aceder a este material.
O tório-229 não ocorre naturalmente. Este é produzido apenas através do decaimento nuclear de certos tipos de urânio. A Universidade de Tecnologia de Viena tem um acordo com o Laboratório Nacional de Oakridge nos EUA, que lhe permite obter algum tório-229 a partir de resíduos de urânio, utilizado em testes nucleares há décadas.
Schumm também não pôde deixar de reparar que o seu primeiro nome (Thorsten) e o nome do elemento (thorium, em inglês) são ambos derivados do mítico deus nórdico Thor.
"Achei graça", afirmou.
Já não era sem tempo
Desde 2020, Schumm tem vindo a realizar investigação básica sobre a criação de um relógio nuclear no âmbito do projeto ThoriumNuclearClock, financiado pela UE, que irá decorrer até ao início de 2026.
Schumm e o seu colega Ekkehard Peik, do Instituto Nacional de Metrologia da Alemanha, em Braunschweig, partilham o papel de principais investigadores do projeto, juntamente com Marianna Safronova da Universidade de Delaware, nos EUA, e Peter Thirolf da LMU de Munique, na Alemanha.
Para colocar um relógio nuclear em funcionamento é necessário um "incentivo", com um laser definido exatamente para o nível de energia. Mas, para a maioria dos núcleos, a frequência de energia necessária não é, de forma alguma, acessível com a tecnologia laser atual.
O tório-229 é um dos maiores núcleos estáveis que existem. Pensava-se que poderia adotar um estado com uma energia muito baixa que os lasers atuais poderiam alcançar - embora ninguém compreenda realmente como ou porque o faz.
"Para começar, nem sequer era realmente claro que este estado do tório-229 existisse", afirmou Schumm. Agora sabe-se que sim, existe. Em 2020, Schumm e os seus colegas publicaram uma medição do nível de energia do isótopo. Desde então, continuaram a desenvolver esse conhecimento.
Tudo isto abre o caminho para testar o relógio verdadeiramente. Schumm e os seus colegas investigadores têm estado a trabalhar na construção de um laser personalizado para estimular o tório com a frequência exata.
Em breve, planeiam dirigir este laser a alguns átomos de tório presos pela primeira vez, numa tentativa de os iniciar.
"Estamos muito entusiasmados com o resultado desta experiência porque é algo nunca antes feito", disse Peik. "Nós e outros já tentámos experiências relacionadas com o tório-229 no passado, sem sucesso. Desta vez, sentimo-nos muito melhor preparados".
Claro como cristal
Para essas experiências, os átomos de tório serão mantidos em armadilhas atómicas - um processo muito exigente. Assim, enquanto o projeto ThoriumNuclearClock já estava em curso, Schumm também liderou um projeto de dois anos, financiado pela UE, chamado CRYSTALCLOCK, que visava desenvolver uma conceção e um mecanismo de leitura mais simples para um relógio nuclear.
A ideia aqui era criar um cristal constituído por fluoreto de cálcio e ter uma difusão de átomos de tório-229 distribuídos através do material. Isto proporciona um material sólido, com o qual é muito mais fácil de trabalhar, comparativamente com as armadilhas atómicas. Schumm e os seus colegas, incluindo o Tomas Sikorsky, publicaram um artigo, demonstrando que estes cristais de tório poderiam ser cultivados em 2022. O próximo passo será começar a trabalhar na forma como o tiquetaque destes cristais pode ser lido.
Schumm diz que uma técnica denominada tomografia nuclear poderia ser adaptada para este fim e todo o processo seria muito mais fácil do que a utilização de átomos de tório em armadilhas.
Forças da natureza
Isto vale a pena, não porque sejam necessários relógios mais precisos, mas sim porque a compreensão fundamental da humanidade sobre como a realidade funciona pode ser testada.
As melhores teorias da física explicam que o universo tem quatro forças fundamentais: a gravidade, o eletromagnetismo, a força nuclear fraca e a força nuclear forte. A intensidade destas forças é conhecida e esses números são frequentemente referidos como "constantes" fundamentais.
Mas não se sabe se a intensidade destas forças foi, e sempre será, a mesma. Existem indícios de que as forças eram muito mais fortes num passado distante, próximo do Big Bang, e podem mesmo continuar a mudar um pouco.
Os relógios atómicos e nucleares podem permitir que tal seja testado. O tiquetaque de um relógio atómico é predominantemente afetado pela força do eletromagnetismo, portanto, se a velocidade do tiquetaque começasse a mudar, isso iria sugerir uma deriva na força subjacente.
No entanto, o eletromagnetismo é muito fraco, pelo que os relógios atómicos, apesar da sua impressionante precisão, podem nunca ser capazes de captar qualquer alteração ao mesmo.
Os tiquetaques do relógio nuclear são, pelo contrário, influenciados pela força forte. Assim, se e quando um relógio nuclear funcional fosse criado, poderia ser utilizado para controlar se existem quaisquer alterações à força forte ao longo dos períodos de tempo.
"Passar dos átomos aos núcleos não significa obter um relógio melhor", afirmou Schumm. "Na verdade, é provável que o primeiro relógio nuclear não seja tão bom como os melhores relógios atómicos. A questão é mais sobre ter um tipo de tecnologia completamente novo que poderia basicamente testar a força forte".
A investigação neste artigo foi financiada através do Conselho Europeu de Investigação da UE e da MSCA (Marie Skłodowska-Curie Actions). Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.