
Com dezenas de milhões de aves abatidas todos os anos para conter a gripe aviária, os cientistas apressam-se a encontrar novas formas de proteger os bandos da infeção e de evitar uma pandemia humana.
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A gripe aviária está a aumentar em todo o mundo e as consequências tanto para as aves migratórias como para as aves domésticas são devastadoras. Na Europa, foram registados mais de 2467 surtos em aves, em 2021-2022, resultando no abate de 48 milhões de aves domésticas em 37 países. Foi a maior epidemia de gripe aviária até agora observada no continente. Só na Alemanha, foram abatidas 2,3 milhões de aves em 2021.
Receios dos avicultores
"Quando afeta o seu bando, as consequências para o avicultor são devastadoras", afirmou Wolfgang Schleicher, diretor-geral da ZDG, a associação central da indústria avícola alemã. "Quando uma infeção positiva é detetada e o avicultor é obrigado a abater todas as suas aves, é algo que custa não só a nível emocional, mas também a nível financeiro".
Até esta década, a gripe aviária era uma visitante esporádica na Europa. Mas agora os avicultores enfrentam a constante ameaça de interrupção dos negócios. Na Alemanha, uma das maiores produtoras avícolas da UE, um avicultor recebe uma compensação parcial pelas perdas e custos resultantes do abate de aves. Mas à medida que as perdas aumentam, o mesmo acontece com os prémios de seguros.
Além disso, os elevados custos de limpeza e desinfeção dos celeiros após um surto devem ser suportados principalmente pelo avicultor. E, após um abate, as explorações estão proibidas de manter animais durante cerca de 30 dias. Em suma, o preço que uma exploração avícola deve pagar por uma infeção por gripe aviária é elevado e leva a operação aos seus limites. "A luta contra a gripe aviária está no topo das nossas prioridades", afirmou a Comissária Europeia da Saúde, Stella Kyriakides, no mês passado, ao anunciar novas regras da UE sobre a vacinação dos animais para conter a propagação da doença.
"Estes surtos estão a causar enormes danos a este setor agrícola e a dificultar o comércio". Até agora, apenas uma vacina contra a gripe aviária está autorizada na UE. As novas regras da UE, que entram em vigor a 12 de março, permitirão a circulação de animais e mercadorias provenientes de estabelecimentos e zonas onde a vacinação tenha sido efetuada. Mas os avicultores não são os únicos afetados. Os consumidores estão a notar aumentos nos preços da carne de frango e dos ovos e, por vezes, escassez nas prateleiras dos supermercados.
Existe, ainda, a preocupação de a infeção se alastrar para a população humana. Dada a oportunidade, o vírus pode sofrer mutações e tornar-se mais infecioso para os seres humanos, talvez até despoletando uma pandemia.
Tudo isto faz com que os cientistas da UE tenham a intenção de encontrar formas de controlar a gripe aviária.
A transmissão do vírus acontece de duas formas: diretamente, com partículas do vírus transportadas pelo ar, passando de ave para ave; e indiretamente, através de material contaminado, como equipamento agrícola. Mas até recentemente, os mecanismos exatos de transmissão permaneceram pouco conhecidos.
Novos conhecimentos
Thomas Mettenleiter coordenou o projeto DELTA-FLU financiado pela UE, que visa preencher as lacunas de conhecimento. A iniciativa de cinco anos, que terminou no final de 2022, reuniu especialistas da Bélgica, Alemanha, Itália, Países Baixos, Suécia, Reino Unido, EUA e Hong Kong.
"Há já algum tempo que a gripe aviária altamente patogénica é considerada uma grave doença animal, mas é algo que se tem verificado mais particularmente nos últimos cinco anos", afirmou o virologista alemão.
Anteriormente, as aves migratórias da Ásia propagavam o vírus às aves domésticas num padrão sazonal, com períodos de baixo risco no verão. A infeção passou agora de surtos esporádicos e raros para uma situação de risco contínuo.
Muitas vezes, isto leva a que as aves domésticas sejam abatidas. Se o vírus for encontrado num bando, todas as aves devem ser abatidas. E quando a gripe aviária é detetada numa área, seja em aves selvagens ou em instalações comerciais, as aves que, de outra forma, poderiam circular livremente, são rotineiramente colocadas em quarentena em celeiros.
"Contudo, o nosso estudo demonstrou que é frequentemente a atividade humana e não a infeção direta através das aves selvagens que causa novas incursões do vírus", disse Mettenleiter, presidente do Instituto Federal de Investigação em Saúde Animal (FLI) na Alemanha.
As pessoas transportam o vírus para as instalações através de calçado, roupa, máquinas, alimentos para animais e camas contaminados, afirma.
De acordo com Mettenleiter, é necessário ter mais cuidado no manuseamento de aves e as medidas de biossegurança devem ser reforçadas. Para tal, elaborou em colaboração com a sua equipa diretrizes para padrões de higiene mais elevados para os funcionários que trabalham com os bandos em confinamento. A esperança é que estas diretrizes sejam adotadas a nível europeu.
Vaga atual
Embora as estirpes da gripe aviária provavelmente já existam há milénios, a variante que desencadeou a atual vaga de surtos - A(H5N1) - surgiu em 1996 na China, como resultado da rápida expansão dos setores comerciais de patos e aves. Em seguida, alastrou-se às aves selvagens e, apenas raramente, aos seres humanos.
Esta variante altamente contagiosa ramificou-se agora em muitas subvariantes que ocorrem principalmente em aves comerciais e aves aquáticas selvagens.
O vírus é classificado como de alta ou baixa patogenicidade (GAAP ou GABP), dependendo das suas características genéticas e capacidade de causar doenças e mortalidade em galinhas. As aves infetadas com os vírus da GABP podem apresentar sinais ligeiros da doença ou mesmo nenhum, ao passo que as infeções por GAAP podem causar doença grave e morte.
Para complicar a situação, os vírus da GABP podem sofrer mutações para outras estirpes altamente patogénicas, tornando vital que os surtos sejam imediatamente controlados. Tanto a GAAP como a GABP podem propagar-se rapidamente através dos bandos.
O projeto DELTA-FLU revelou a composição genética das estirpes da gripe aviária atualmente prevalecentes no continente. Utilizando técnicas de sequenciação total do genoma, os investigadores fizeram a descoberta surpreendente de que a gripe aviária na Europa é uma «incursão de enxame» - por outras palavras, existem muitas variantes em circulação (mais de 15 na Europa).
A partir disto, os investigadores demonstraram que as variantes estão a misturar o seu material genético para criar novas subvariantes. De forma preocupante, desde 2016, alguns destes vírus mutantes espalharam-se por outros animais, incluindo raposas, martas e focas. A nível mundial, registaram-se, pelo menos, 200 casos em mamíferos. No entanto, de forma encorajadora, a gripe aviária continua mal-adaptada aos humanos. As infeções em humanos ocorrem de tempos a tempos, mas são raras e normalmente só acontecem após contacto próximo, prolongado e desprotegido (sem luvas ou vestuário de proteção) com aves infetadas.
Ligação ao porco
É pouco provável que surja uma pandemia de gripe aviária, a menos que o vírus se estabeleça primeiro num mamífero intermediário - muito provavelmente num porco. As células dos porcos possuem qualidades que tornam possível a propagação e replicação de vírus tanto de aves como de humanos.
"A preocupação é que um dia um porco atue como um recipiente de mistura, co-hospedando vírus da gripe tanto de aves como de humanos", afirmou Mettenleiter. "Isto pode resultar num novo rearranjo - um vírus híbrido com material genético de ambos os vírus". O trabalho científico em mais vacinas contra a gripe aviária está a decorrer em paralelo com deliberações persistentes dos governos na Europa sobre os méritos da vacinação para combater a doença. A vacinação de animais contra doenças pode levar a barreiras comerciais nos mercados de exportação. Isto deve-se às preocupações em alguns países importadores de que os animais vacinados ainda possam contrair uma doença e propagá-la.
Neste contexto, Mettenleiter acredita que a vigilância continua a ser extremamente importante.
A investigação neste artigo foi financiada pela UE. Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.
ONE HEALTH
A abordagem One Health baseia-se na compreensão bem estabelecida de que a saúde humana está intimamente ligada ao bem-estar dos animais e do ambiente. Defende uma estreita colaboração entre os domínios da saúde pública, saúde animal e segurança alimentar para combater as doenças de origem alimentar e animal, a resistência antimicrobiana e as ameaças emergentes. O One Health European Joint Programme, financiado pela UE, é um exemplo do conceito One Health. Desde janeiro de 2018, reuniu 44 aclamados laboratórios e institutos alimentares, veterinários e médicos, em 22 estados-membros da Europa, para melhorar a capacidade de deteção, prevenção e resposta dos países europeus. O Joint Programme terminará em 2023.
A conferência «Collaborating to Face Future One Health Challenges in Europe» (Colaborar para enfrentar os futuros desafios da One Health na Europa), que terá lugar em Bruxelas de 19 a 21 de junho de 2023, é uma oportunidade para refletir sobre o futuro da One Health, com particular incidência na Europa. Registe-se para participar na conferência, aqui.
