Fomos à cozinha de Vincent Farges para conhecer em primeira mão o novo Menu de Primavera da Fortaleza do Guincho.
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A primavera é a estação dos mil prodígios. Nós, que sabemos que o ciclo anual é um círculo contínuo, sem princípio nem fim, intuímos que é nesta altura que tudo começa. O momento zero da vida na Terra deve ter acontecido por altura da primavera. Vêm as flores, os rebentos, as crias mais tenras, as ervas mais intensas e expressivas e até alguns peixes dos nossos mares namoram mais a costa nesta altura. A própria vida ganha vida. Apesar da supremacia de que nos convencemos em relação a tudo que é natureza e coisas da terra, também fazemos parte deste relançamento de tudo. À mesa, deixamos de suspirar pelos estufados longos e pela chama na lareira, para nos rendermos à mesa lá fora, aos aromas da borragem, às saladas, mariscos e a tudo que é cru sem ser cruel. As mesas Michelin refletem nesta altura, em todo o mundo, o grande recomeço.
O produto é determinante para justificar o gabarito supremo das estrelas, como de resto devia acontecer com todo e qualquer restaurante. Habituámo-nos a ter legumes, fruta, batatas, ao longo do ano, contemporizando em termos de qualidade, mas é na altura certa que eles sabem melhor. Fomos sondar o chef Vincent Farges, da Fortaleza do Guincho, acerca da estação que
agora desponta e encontrámo-lo a ultimar o novo Menu de Primavera. À sua frente, uma coleção de legumes baby da Quinta do Poial, em Azeitão.
Quando pensa em primavera, Vincent Farges pensa «em cores vivas, rebentos, legumes e aromas fortes». Cada produto tem a sua altura certa de consumo. Em termos de proteína, «borrego de leite e patos pequeninos». O mar, logo ali em baixo, é fonte de inspiração. «Agora é a altura certa dos ouriços, o rascasso também é importante e o pregado está no seu melhor.»
Tartelete de legumes da Quinta do Poial perfumados com fava tonka, creme de foie gras fumado e lascas de bife wagyu
Uma entrada ao estilo da boa mesa pode oferecer bandeiras de sabor e aroma para o resto da degustação. É brilhante a opção de Vincent Farges, ao fumar o foie gras, transformando-o depois num creme muito macio, e ao escolher a superperfumada fava tonka para aromatizar os legumes. O cheiro libertado pelo prato é rico, profundo e cheio de personalidade. Há ainda um jogo de texturas muito interessante que abarca a cocção perfeita de cada legume, a massa crocante que serve de base e os rolinhos da exótica carne wagyu, a mesma do famoso bife de kobe.
Filete de Rascasso salteado com funcho-do-mar, legumes e batata ratte em vinagreta de bottarga
Grande peixe é o rascasso! Muito delicado na textura, quando está bem fresco presta-se às maiores aventuras culinárias. O chef Farges foi buscar uma iguaria de origem italiana que é também reclamada por Marselha. É a bottarga, ovas secas de peixe, que os franceses têm o hábito de envolver em cera de abelha, para proteger da luz. As utilizadas provêm de um peixe da família da tainha. A presença das ovas marca o ciclo fecundo que carateriza a primavera e a apresentação em vinagreta é brilhante, porque respeita a realeza do rascasso nesta altura do ano. O ambiente vegetal, com o marítimo funcho-do-mar a dominar o conjunto, constitui uma ligação à terra que se saúda.
Pregado selvagem assado em molho de funcho, batata fondante, royal de ouriços e funcho crocante com raspa de limão
Mais uma solução surpreendente de Vincent Farges. Os extraordinários ouriços-do-mar que conseguiu trazer para a sua cozinha são essência marítima intensa, de sabor tão singular que nos faz pensar: «Por que motivo não substituem tantas vezes as ostras e o caviar?» O que fez ele? Transformou-os em royal, uma variante gelatinosa e cremosa que deu suavidade e complexidade ao produto. Para quê? Para prestar vassalagem ao gigante pregado de mais de oito quilos que comprou, um colosso de sabor e textura. O funcho conferiu um ambiente aromático genial ao conjunto, assessorado por umas lascas crocantes do mesmo distribuídas pelo prato, juntamente com a raspa de limão.
Borrego de leite dos Pirenéus assado, alcachofras e favas em barigoule anisado, migas de streussel com ervas selvagens
Provém do País Basco francês esta carne, que poderia denominar-se cordeiro, já que se alimentou principalmente do leite materno. A barigoule é uma preparação típica da Provença em que as ervas e os legumes baby estão ao rubro nesta altura.
O toque anisado completa o bouquet aromático forte deste prato, de grande recorte técnico. Presta-se a diversas harmonizações vínicas.
Crocante de citrinos e parfait perfumado com Grand Marnier bicentenário, sorvete de toranja e marmelada de kumquat confitado
Para a sobremesa, o chef da Fortaleza do Guincho optou pela festa de citrinos, brincando com preparações e texturas. É fundamental brincar na primavera. O binómio proporcionado pelo brilhante sorvete de toranja e a marmelada do pequenino mas assertivo kumquat criou uma atraente sensação de frescura e abertura, permitindo apreciar o parfait com o palato convenientemente calibrado.