Pouco tempo depois de ter assumido o pontificado, Francisco declarou que seria intransigente perante os crimes de pedofilia na Igreja Católica e que iria combatê-los com determinação, seguindo a linha de tolerância zero iniciada pelo seu antecessor.
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O Vaticano tinha publicado em maio de 2011 normas reguladoras para casos de abusos sexuais sobre menores cometidos por clérigos, num documento da responsabilidade da Congregação para a Doutrina da Fé que refletia as preocupações que Bento XVI havia manifestado, ao afirmar que "o perdão não substitui a justiça" e que "a maior perseguição não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado da Igreja".
O escândalo dos abusos sexuais que tem abalado a Igreja Católica nas últimas décadas também manchou o nome da Companhia de Jesus, ordem religiosa que Francisco escolheu e de que foi provincial na Argentina. Além de situações que aconteceram no seu próprio país, foram reconhecidos casos, pelo menos, no Chile, em Espanha e até em Portugal.
No caso português, os abusos terão sido cometidos por oito jesuítas, entre 1950 e o início de 1990. Num comunicado da Província Portuguesa da Companhia de Jesus divulgado em finais de setembro de 2022, referia-se que as vítimas tinham entre 9 e 16 anos e que os abusadores já tinham morrido. Ainda assim, nada que pudesse comparar-se à situação em Espanha, com os jesuítas a admitir, em janeiro de 2021, que 81 menores e 37 adultos sofreram abusos por parte de 96 membros da ordem desde 1927.
A revelação dos abusos sexuais por padres católicos levou a uma série de processos em todo o Mundo e deu a conhecer também vários casos de encobrimento por parte das hierarquias - neste capítulo, Portugal não foi exceção.
Veja-se o exemplo do relatório da investigação pedida pelo arcebispo de Munique, divulgado em janeiro de 2022, que revelou que o Papa emérito omitiu casos que aconteceram na Alemanha entre 1977 e 1982. Bento XVI acabou por reconhecer vergonha por esses casos, mas refutou a acusação. As regras da Santa Sé quanto à denúncia de abusos tornaram-se mais claras e incisivas em 2019 e em 2020, como adiante explicaremos.
Já depois da renúncia de Bento XVI, o Vaticano viria a confirmar uma notícia divulgada pela agência noticiosa Associated Press, segundo a qual o Papa alemão expulsou 400 padres, entre 2011 e 2012, por abusos de menores. A informação veio a lume em janeiro de 2014, na altura em que um representante da Santa Sé teve de responder perante uma comissão das Nações Unidas, em Genebra, acerca das medidas que a Igreja Católica estava a tomar sobre a matéria. A expulsão dos clérigos terá sido a expressão máxima do conceito de "tolerância zero" que Ratzinger quis imprimir ao seu pontificado, no que à pedofilia dizia respeito.
Ordenou a detenção domiciliária de um arcebispo polaco
Francisco, para quem "o padre deve conduzir as crianças a Deus e não destruir-lhes a vida", anunciou em 2015 a criação de um tribunal no Vaticano para julgar bispos acusados de encobrir ou de não terem tomado medidas para evitar abusos sobre menores dentro do clero. Se Francisco queria responsabilizar os abusadores, passou a fazer o mesmo com os que sabiam e nada fizeram.
Antes disso, muitas alterações foram feitas. Desde logo, através da reforma penal de 2013, que aboliu a prisão perpétua (a pena máxima por crimes julgados pela Santa Sé passou a ser de 35 anos) e endureceu as penas para casos de pedofilia. A grande notícia nesta matéria foi divulgada em 2014, quando o próprio Francisco ordenou a detenção domiciliária de József Wesolowski, um arcebispo polaco que foi indiciado pelos crimes de pedofilia e de posse de material pornográfico infantil praticados quando exerceu o cargo de núncio apostólico na República Dominicana (entre 2008 e 2013). O julgamento - que seria o primeiro na história do Vaticano por crimes de pedofilia - foi agendado para julho de 2015, mas não chegou a acontecer porque Wesolowski adoeceu e morreu pouco depois, a 27 de agosto. Tinha 67 anos.
Diferente foi o desfecho do processo de Carlo Alberto Capella, condenado pelo Tribunal da Santa Sé em 2018 a uma pena de prisão de cinco anos. Antigo conselheiro da Nunciatura em Washington (EUA), foi sentenciado por posse e troca de material pornográfico infantil. Francisco chamara-o ao Vaticano em 2017, para ser julgado, na sequência de uma investigação feita pelas autoridades norte-americanas.
Lembremos aqui, a título de curiosidade, um artigo publicado pelo jornal "The Washington Post" em outubro de 2021. Nele se dizia que Capella era, à data, o único prisioneiro do Vaticano, cidade-estado onde há apenas três celas de prisão e onde era raro haver julgamentos, não obstante a quantidade de casos que começaram a ser investigados na era de Francisco, tanto respeitantes a esta matéria como no capítulo financeiro, isto é, relacionados com o Instituto para Obras de Religião, conhecido como o "Banco do Vaticano". A justiça da Igreja também será lenta e, por outro lado, muitos processos acabaram por prescrever.
Outro caso que se tornou mediático, embora com contornos diferentes, foi protagonizado pelos padres Gabriele Martinelli e Enrico Radice, que começaram a ser julgados em outubro de 2020. Martinelli, aluno do Pré-Seminário S. Pio X que só atingiu a maioridade em agosto de 2010, foi acusado por abusos sexuais cometidos entre 2007 e 2012 contra um companheiro sete meses mais novo do que ele. Radice, então reitor da instituição, respondia em tribunal por ter obstruído a investigação. Um ano depois da primeira audiência, ambos foram absolvidos.
Medidas assertivas e pedidos públicos de desculpa
Voltemos às reformas de Francisco. Em 2014, criou a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, que, em 2022, por força da nova Constituição Apostólica, "Praedicate Evangelium" (em português, "Pregai o Evangelho"), foi incluída no Dicastério para a Doutrina da Fé. No documento em que justificou a criação desse órgão consultivo, o Papa lembrou que a tutela das crianças, jovens e adultos vulneráveis assenta no compromisso de lhes "garantir o desenvolvimento humano e espiritual compatível com a dignidade da pessoa humana".
"Será tarefa específica da comissão apresentar-me as iniciativas mais oportunas para a proteção dos menores e dos adultos vulneráveis, de modo que se realize tudo o que for possível a fim de garantir que crimes como os que foram cometidos não voltem a repetir-se na Igreja", acrescentava.
Entre medidas assertivas e pedidos públicos de desculpa por este lado sombrio da Igreja, de que confessou ter vergonha, o Papa argentino prosseguiu o seu caminho, apesar de também ter tido as suas hesitações. Em 2018, reconheceu ter cometido "erros graves de julgamento e perceção" no caso que envolveu o padre chileno Fernando Karadima, que acabaria por expulsar do estado clerical em setembro desse ano (depois de, em 2011, o Vaticano o ter afastado das funções eclesiásticas), na sequência da maior sentença até então aplicada no seio da Igreja Católica.
Entre os envolvidos no escândalo que abalou o Chile estava o bispo de Osorno: sobre Juan Barros, nomeado por Francisco em 2015, pendiam acusações de ter encoberto os abusos sexuais cometidos por Karadima nas décadas de 1980 e 1990. O seu pedido de demissão, apresentado em junho de 2018, foi imediatamente aceite por Francisco. Quanto a Karadima, veio a falecer em julho de 2021, aos 90 anos.
O Sumo Pontífice acabaria por receber no Vaticano uma das vítimas de Karadima, Juan Carlos Cruz, para lhe pedir perdão. Apesar de ter emendado a mão sobre este caso e não obstante a intransigência manifestada desde que chegou ao Vaticano, Francisco foi criticado na visita que fez à Irlanda, em agosto de 2018. Respondendo à acusação de que nada fazia, usou a expressão "crimes repugnantes". Também por essa altura, choviam críticas dos EUA por ter demorado a reagir aos relatórios sobre abusos de mais de 300 padres na Pensilvânia. Já no Chile, onde tinha estado em janeiro do mesmo ano, enfrentara a ira de vítimas e familiares quando classificou como "calúnias" as afirmações acerca de Juan Barros, meio ano antes de reconhecer que, afinal, estava enganado.
Em maio de 2019, Francisco determinou, na carta apostólica "Vos estis lux mundi" ("Vós sois a luz do Mundo"), que qualquer membro do clero "tem a obrigação de assinalar prontamente" os crimes tipificados no mesmo documento, crimes esses que incluem o abuso de menores e de pessoas vulneráveis, a pornografia infantil e os casos de não denúncia e cobertura dos abusadores, por parte das hierarquias do clero. Em dezembro desse ano, aboliu o segredo pontifício para os casos de abusos sexuais (abrangendo denúncias, processos e decisões relativas aos crimes sexuais ou de violência sobre menores ou pessoas vulneráveis, quer sejam reportados por vítimas quer por denunciantes).
No ano seguinte, e na sequência de dúvidas suscitadas pela referida carta apostólica em relação aos procedimentos penais da sua competência, a Congregação para a Doutrina da Fé (designada Dicastério para a Doutrina da Fé desde que entrou em vigor a nova Constituição Apostólica, em junho de 2022) elaborou um extenso manual. Além de tipificar os delitos, estabeleceu normas quanto à investigação, obrigatória sempre que se tenha conhecimento do caso (ainda que o menor não apresente denúncia formalmente), e determinou que "a autoridade eclesiástica apresente denúncia às autoridades civis competentes, sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos".
Perante o resultado da investigação, aquele "ministério" do Vaticano tem várias formas de concluir o caso, desde arquivar a abrir um processo penal judicial, que pode decorrer ser confiado a um tribunal inferior.
A Igreja Católica passou, em 2021, a enquadrar o crime de abuso sexual de menores no Código de Direito Canónico (alterou o Livro VI), no capítulo dos "delitos contra a vida, a dignidade e a liberdade do homem". A pedofilia, mas também o abuso de adultos vulneráveis, posse ou divulgação de pornografia são desde então penalizados pela lei fundamental católica.
Depois da publicação de mais um relatório devastador, em outubro de 2021 Francisco afirmou-se envergonhado pela revelação de que cerca de 216 mil crianças e jovens tinham sido vítimas de abusos sexuais por clérigos em França, entre 1950 e 2020. "Para ti, Senhor, a glória. Para nós, a vergonha. Este é um tempo de vergonha", disse o Papa.
Em abril de 2022, pediu à Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores que apresente anualmente um relatório sobre os casos de abusos dentro da Igreja Católica. O documento deve conter também as iniciativas que estão a ser realizadas pela Igreja para prevenir estes abusos e indicar que mudanças são necessárias para que as autoridades competentes possam tomar medidas.
Encontro com vítimas em Portugal
Já em 2023, durante da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, Francisco encontrou-se com algumas das vítimas de abusos de sexuais em Portugal, num encontro reservado que juntou 13 sobreviventes. O encontro teve lugar na Nunciatura Apostólica, a embaixada da Santa Sé em Portugal, tendo o Santo Padre pedido perdão às vítimas de abusos em nome da Igreja Portuguesa. "Sofro com as vítimas", terá dito, emocionado, admitindo que são cicatrizes que vão ficar para sempre.
O Papa pediu a cada uma das vítimas que lhe contasse a sua história, tendo estado reunido com o grupo durante mais de uma hora. Ouviu tudo o que as vítimas lhe contaram e interagiu, admitindo que os abusos sexuais na Igreja são uma "catástrofe" e que o seu desejo é que a Igreja seja segura. Pediu várias vezes perdão e mostrou-se emocionado à medida que ouvia as histórias. Uma das vítimas que foi ouvida é hoje padre e confessou ter sido abusada por um sacerdote.