O relatório final da comissão independente criada para avaliar as acusações de assédio contra Boaventura Sousa Santos, diretor emérito do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, e outros membros da instituição, confirma "indícios" de abuso de poder e de assédio.
Corpo do artigo
No relatório final divulgado esta quarta-feira, lê-se que dos documentos analisados e audições realizadas, a comissão concluiu que existiram "padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES". "Verificaram-se indícios de que atividades de integração informais (por exemplo, jantares, convívios fora do CES) geraram situações inadequadas ao contexto académico, bem como indícios de ausência de uma política de acolhimento institucional e formal que favorecesse o conhecimento do CES pela sua comunidade", lê-se no documento de 114 páginas.
A comissão independente de esclarecimento de situações de assédio no CES entrou em funções em agosto do ano passado, após denúncias feitas por estudantes e investigadoras contra o sociológo e diretor emérito do centro, Boaventura Sousa Santos e o investigador Bruno Sena Martins. Lieselotte Viaene, Myie Tom e Catarina Laranjeiro foram as autoras de um capítulo do livro "Má Conduta Sexual na Academia", publicado em abril pela editora Routledge, onde constavam denúncias contra os dois homens e relatavam um clima de assédio e intimidação no centro de investigação. Mais tarde, outras mulheres vieram publicamente dar os seus testemunhos. Os nomes de denunciantes e denunciados não são referidos no relatório.
A comissão independente sublinha que diversas direções do CES, "ao longo de anos", subvalorizaram "situações menos próprias", o que pode "ter contribuído para a eventual perpetuação" dessas condutas, sendo as estudantes e investigadoras estrangeiras "as mais vulneráveis". "Verificaram-se indícios de negligência na forma como certas questões foram tratadas por parte de algumas pessoas que ocupavam cargos nos órgãos sociais do CES, bem como de pessoas que estavam hierarquicamente em posições díspares (por exemplo, na relação orientador/a – orientando/a)", frisa a comissão.
Denunciantes referem "contacto físico sexualizado" e não autorizado
Nas considerações finais, a comissão independente, formada por cinco especialistas de várias áreas, e externas ao CES, refere que as pessoas denunciantes relataram situações de assédio moral, sexual e até abuso sexual no CES. No caso do abuso sexual, entende-se por "contacto físico sexualizado, indesejado e não autorizado".
Na instituição, haveria a "presença de um poder formal e hierárquico", pelo que as decisões eram sempre tomadas pelo mesmo "grupo de decisão". "As pessoas denunciantes alegaram vivenciar inseguranças, uma confusão cognitiva que intensificou a vulnerabilidade, a fragilidade do ambiente e que mantém a estrutura de poder", lê-se no relatório da comissão independente, apresentado esta quarta-feira, em Coimbra. As pessoas denunciantes referem que eram criticadas pela maneira de vestir, de se comportar e por opiniões pessoais, contrárias às das pessoas denunciadas.
As denúncias recebidas relatam não haver separação entre a vida profissional e a pessoal no CES. As situações de assédio ocorriam maioritariamente fora do local de trabalho, em horário pós-laboral e após o consumo de álcool, o que reforçava "a falta de fronteiras seguras entre a esfera profissional e a esfera privada".
Para além disso, a precariedade e a instabilidade da relação laboral dos investigadores com o centro criou um "ambiente extremamente competitivo" e "fomentou a rivalidade entre colegas e a lealdade para com os detentores do poder". Há também relatos de "isolamento de investigadores com base em intrigas e rumores".
As pessoas denunciantes salientaram "comportamentos reiterados de importunação sexual", como "toques indesejados e não consentidos em partes do corpo"; a "manutenção de relações sexuais com pessoas em posições hierárquicas inferiores e/ou de vulnerabilidade, enquanto estas se encontravam sob efeito de substâncias e sem condições plenas para prestar consentimento livre e esclarecido"; e a "manutenção de relações sexuais com alunas/investigadoras, cuja avaliação estava diretamente dependente das pessoas que as procuravam".
Uma minoria dos acusados confirma assédio no CES
Relativamente às pessoas denunciadas, que também foram escutadas para a elaboração do relatório, a maioria rejeitou as acusações e várias referiram que as denúncias públicas tratam-se de um "ataque ao CES". Porém, uma minoria "confirmou vários dos factos alegados nas denúncias apresentadas pelas pessoas", nomeadamente a "existência de relações íntimas de cariz sexual entre professores/investigadores e alunas/investigadoras". De ressalvar que as denúncias recebidas pela comissão independente ficaram na esfera dos especialistas e não foram divulgadas a nenhuma das partes.
Apesar de algumas pessoas reconhecerem "casos pontuais de assédio", que foram resolvidos, outros afirmaram à comissão independente que "toda a gente sabia" deste tipo de situações. As pessoas denunciadas também consideraram que as "relações íntimas, algumas não monogâmicas, existentes entre membros do CES, mesmo entre pessoas em posições hierárquicas distintas, eram da esfera pessoal".
Comissão propõe criação de canal para receber denúncias anónimas
A comissão conclui ser “primordial” a aprovação de “uma política institucional de prevenção e de combate ao assédio e abuso” e fez recomendações concretas ao nível da prevenção e intervenção sobre queixas.
Um das propostas é a criação de um canal para denúncias anónimas, que a comissão considera “merecem atenção e não devem ser negligenciadas” , que deve funcionar junto da Provedoria do CES.
A comissão alerta que quando os acusados têm vínculo laboral com a instituição, em caso de processo disciplinar, ficam sujeitos às regras e sanções do Código do Trabalho. Mas, para os que não têm, como por exemplo, estudantes de doutoramento, “há um vazio que deve ser preenchido”. Para esses casos, a comissão propõe a criação de um regulamento e de uma comissão disciplinar, que deve conduzir os processos e eventualmente aplicar sanções. É defendido o anonimato e a proteção de denunciantes mesmo que, tal como os alegados autores de más práticas, já tenham abandonado a instituição.
Outra recomendação é que seja feita um “mapeamento” da prevalência de casos de abuso e de assédio, através de um questionário que deve ser respondido de forma anónima. Este levantamento, sugere a comissão, deve ser feito por um grupo específico que envolva representantes de estudantes, investigadores e técnicos, além da Provedoria.
Como aproximadamente “metade” dos denunciantes são ex-estudantes do CES, a comissão também recomenda que os alunos renham representação no Conselho Científico, na Comissão de Ética e “em outros órgãos em que os assuntos discutidos lhes dizem direta ou indiretamente respeito”.
Ao nível da prevenção, o atual Código de Conduta do CES, “apesar de responder aos requisitos legais no tocante ao assédio e abuso, é insuficiente para responder às necessidades da comunidade”. Por ser “desconhecido” da maioria, a comissão recomenda que faça parte da documentação entregue a quem ingresse no CES.
11% pedem compensação financeira
A comissão independente recebeu denúncias de 32 pessoas, a maioria (78%) mulheres que apresentaram queixa enquanto vítimas (48%), testemunhas (41%) ou “praticantes” (4%), no sentido de assumirem ter sido negligentes “perante a observação de situações de assédio”. A maioria das denúncias referem-se a casos de assédio moral (28%), abuso de poder (27%) e assédio sexual (19%).
Entre as “formas de reparação” pedidas à comissão, destacam-se um pedido de desculpa público (13%), uma compensação financeira (11%), a criação de uma provedoria e de um gabinete de apoio às vítimas externo ao CES (13%) ou a criação de um código de acolhimento para estudantes e investigadores estrangeiros (13%).
A maioria das pessoas denunciadas (64%) são mulheres e investigadoras (79%). Metade foram acusadas de encobrimento, 29% por má prática e 21% por negligência.