Há mulheres com endometriose a quem o direito de faltar ao trabalho, como prevê a legislação aprovada no final de abril, está a ser negado pelas entidades patronais. A situação é mais crítica na Função Pública, devido a uma omissão na lei. Governo admite rever a lei para tornar acesso "mais inequívoco".
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Foi no ano passado, depois de (mais uma) ida às Urgências com dores lancinantes, que Raquel, 27 anos, tomou conhecimento, pela primeira vez, do termo endometriose. Até lá, nunca tinha ouvido falar da doença crónica que afeta uma em cada dez mulheres em idade fértil. "Tinha dores muito fortes. Era como se me estivessem a espetar pequenas agulhas ao longo da minha zona abdominal, que já estavam a afetar a lombar e a perna esquerda", descreve a jovem da Amadora, ao JN. Apesar de sempre ter "sofrido muito" com a menstruação, com fortes hemorragias e idas constantes ao hospital, nunca tinha sido diagnosticada. "Por ser nova, os médicos diziam-me que era normal, que ser mulher é isto, é ter dores, que iam passar se um dia fosse mãe. O que não foi o caso", aponta.
O diagnóstico e consequente tratamento não resolveram o problema. A juntar ao "investimento" de cerca de 60 euros que faz todos os meses em medicação - apesar de o Governo ter aprovado a comparticipação no início do ano, o fármaco que toma não está contemplado na lista - e aos efeitos secundários da mesma, relacionados com um quadro depressivo, Raquel foi confrontada com mais um obstáculo, no emprego que tem há mais de cinco anos. A entidade patronal recusa-se a cumprir a Lei n.º 32/2025, aprovada em abril, que prevê o direito de as trabalhadoras com endometriose faltarem ao trabalho durante três dias, sem perda de remuneração. "Disseram-me que iria prejudicar as minhas colegas, que iriam sentir-se revoltadas e desvalorizadas. Não tenho culpa de ter esta doença, não a escolhi, não a comprei. Só peço respeito e empatia, mas é difícil", denuncia Raquel, lamentando os comentários de troça de que é alvo.
Mesmo com a declaração médica obrigatória para usufruir do direito, foi-lhe negado o acesso, o que a obriga a faltar, mesmo sem receber. "Não consigo estar em pé. É a sensação de desmaio, fraqueza, corpo massacrado. É uma doença que dá cabo do interior de uma mulher, a todos os níveis. Emocional, profissional, familiar, social. Deixo de ir a sítios com medo de ter uma dor, de ficar desorientada, ando sempre com um kit de analgésicos, pensos, toalhetes e uma muda de roupa a mais porque já sei o que pode acontecer", descreve.
Estado chamado a assegurar pagamento
O facto de trabalhar na Função Pública, na área da Educação, agudiza ainda mais o problema. Segundo a MulherEndo, associação que há 12 anos defende as mulheres com endometriose e adenomiose, há entidades do setor, nomeadamente escolas e hospitais, que estão a negar o direito às trabalhadoras, alegando que a Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas (LTFP) não foi alterada. "Estão à mercê da gestão de cada local porque há casos onde efetivamente está a funcionar bem, porque as entidades entendem que, não tendo sido alterada a LTFP, devem guiar-se pelo Código do Trabalho, mas há outras que não. Há vários pesos e medidas", aponta Susana Fonseca, presidente da associação.
Questionado pelo JN, o Ministério das Finanças, que tutela a Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, admitiu que existem "interpretações divergentes quanto à aplicabilidade do regime das faltas" e informou que o Governo "encontra-se a analisar a situação, assim como a necessidade de clarificar o direito a faltar justificadamente" às trabalhadoras que trabalham no setor público, "de modo a tornar o regime de faltas mais inequívoco e convergente com aquele previsto no Código de Trabalho".
A dirigente indica que o problema se estende ao setor privado, onde há "desconhecimento das entidades patronais sobre a existência da lei e sobre quem paga" os dias às trabalhadoras. Ao JN, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) confirma que o encargo é da responsabilidade dos patrões, frisando que está explícito na lei, através da expressão "sem perda de qualquer direito, incluindo retribuição". A MulherEndo critica, justificando que gera discriminação nas empresas. "Na nossa perspetiva, não faz sentido, porque a entidade patronal pode estar privada da sua funcionária até três dias e tem de pagar-lhe na mesma como se ela estivesse a trabalhar. E isso já está a causar situações de ameaça de despromoção de cargo ou de não renovação de contrato", denuncia Susana Fonseca, defendendo que o valor seja assegurado pelo Estado.
Numa resposta escrita enviada ao JN, o presidente do conselho de administração da Associação Empresarial de Portugal (AEP) indica que, até ao momento, só foi abordado uma vez acerca da nova legislação, partilhando da posição de que seja o Estado a assegurar a remuneração dos dias de ausência. Luís Miguel Ribeiro considera que, apesar de estas faltas serem "justamente consagradas", o Estado não deve "atirar o ónus do pagamento para os empregadores", uma vez que "muito em breve, as empresas ver-se-ão a suportar encargos que são da sociedade e não das empresas, substituindo-se ao Estado naquilo que é o [seu] papel social".
"A AEP alerta que este tipo de medidas, com implicações diretas na estrutura de custos das empresas, deveria ser objeto de uma análise mais aprofundada e acompanhada de mecanismos de compensação por parte do Estado. A imposição direta do encargo financeiro às empresas, sem qualquer apoio ou contrapartida, levanta preocupações legítimas", partilha o dirigente, destacando as "já sérias dificuldades operacionais e de sustentabilidade" sentidas pelas pequenas e médias empresas (PME).
Dificuldade no acesso à prescrição médica
A somar aos desafios no emprego, a presidente da MulherEndo refere que o problema começa ainda com a declaração médica necessária para usufruir do direto, já que há "muitos profissionais de saúde que não têm conhecimento que a lei está em vigor" e não sabem quem é responsável pela prescrição. O quarto problema, para Susana Fonseca, tem a ver com o facto de a legislação só permitir faltar durante o período menstrual, algo que não inclui o universo completo de doentes, uma vez que nem todas têm sintomas incapacitantes nessa altura do mês.
Apesar das críticas e dos apelos à mudança, Susana Fonseca sublinha que foi com "muito agrado" que viu a lei ser aprovada, mas aponta que há ainda caminho a fazer, nomeadamente de sensibilização. "Nós, mulheres, fomos sempre habituadas a esconder a dor e a aceitar que fazia parte da condição da mulher. E isso não é, de todo, normal. Quando temos uma dor de dentes, aguentamos uma semana e vamos ao dentista, por isso, não faz sentido sofrer, mês após mês, com dores incapacitantes, não conseguir ir trabalhar ou ir à escola. É preciso encontrar a causa e ajustar o tratamento", frisa.
O Bloco de Esquerda, partido responsável pelo projeto de lei que consagrou este direito para as mulheres com endometriose, garantiu ao JN que vai questionar o Governo sobre as irregularidades denunciadas pela associação.
O que prevê a legislação
Três faltas justificadas
A Lei n.º32/2025 prevê que a "trabalhadora que sofra de dores graves e incapacitantes provocadas por endometriose ou por adenomiose durante o período menstrual tem direito a faltar justificadamente ao trabalho, sem perda de qualquer direito, incluindo retribuição, até três dias consecutivos por cada mês de prestação de trabalho". Para tal, a doente tem de entregar uma prescrição médica que atesta a condição clínica ao empregador, "constituindo prova de motivo justificativo de falta, sem necessidade de renovação mensal".
Comparticipação de medicamentos
A portaria que estabelece a comparticipação de 69% em medicamentos para o tratamento de endometriose foi publicada em Diário da República, a 25 de novembro do ano passado, e entrou em vigor a 1 de janeiro de 2025. A norma também tem causado alguns problemas, como atrasos e subidas de preço após a comparticipação.
Endometriose
O que é?
A endometriose é uma doença crónica que afeta uma em cada dez mulheres em idade reprodutiva. É caracterizada pela presença de um tecido semelhante ao endométrio (o que reveste internamente o útero), que se espalha pelos órgãos, criando uma resposta inflamatória. Em 90% dos casos, esse tecido aloja-se na pélvis (afetando a trompa, ovário ou útero), mas também pode implantar-se noutros órgãos mais próximos, como bexiga e intestino, ou mais distantes, como diafragma, pulmão ou cérebro. Embora não seja uma doença do sistema reprodutor, reage ao ciclo menstrual e descama mensalmente, fazendo com que a menstruação tenha mais intensidade.
Quais os sintomas?
Para 80% das mulheres, a dor é o principal sintoma, sobretudo a dismenorreia (dor menstrual) e/ou dor pélvica. Há mulheres ainda com dores a urinar, a evacuar ou na relação sexual, bem como com hemorragias. De acordo com a Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva, a endometriose está presente em 50% das mulheres inférteis e 30 a 50% das doentes com endometriose são inférteis.
Como é feito o diagnóstico?
Baseia-se na história de vida da mulher, nos sintomas e sinais que apresenta. É corroborado por técnicas de exame físico e de imagem, e, finalmente, comprovado pela histologia das lesões. A laparoscopia é o meio mais fiável de diagnóstico, embora os métodos de imagem não-invasivos também sejam importantes para uma definição adequada do estádio da doença.
Há tratamento?
Sim, apesar de não ter cura, na maioria dos casos. Não existe uma forma de tratamento única, uma vez que cada doente apresenta um quadro clínico específico, mas as terapias variam entre analgésicas, hormonais, cirurgia medicamente assistida, nutrição, psicologia, fisioterapia do pavimento pélvico, etc..