Por uma "casa para viver", contra um "Porto morto": a cidade foi pequena para tanta gente
Protesto pela melhoria das condições de acesso a habitação e contra as políticas públicas levou cerca de nove mil pessoas ao centro da Invicta num dos dias mais quentes do mês. Rui Moreira foi o alvo a abater, acusado de ser o maior responsável pela subida do custo das casas num Porto que está "morto".
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Podiam ter ido para a praia apanhar o sol de outono que queimava a pele, mas as cerca de nove mil pessoas que, este sábado à tarde, ocuparam as ruas do centro do Porto preferiram gritar, marchar e lutar contra a crise na Habitação e pelo direito a ter "casas para viver" - o mote do movimento que hoje levou às ruas milhares de pessoas em pelo menos 24 cidades do país.
A fileira de várias centenas de manifestantes que arrancaram da Praça da Batalha, por volta das 15.30 horas, foi engrossando, ganhando corpo e voz durante a marcha de hora e meia até aos Aliados, onde o fim da tarde trouxe várias intervenções de cidadãos e organizações da sociedade civil. Um corpo forte e plural, feito de gerações várias, muitas vezes de punho em riste, e uma voz una e assertiva, às vezes colérica, contra o estado de sítio a que o mercado de arrendamento tem condenado a procura por uma casa digna.
"Se o banco sobe a prestação, não há direito à habitação", “Habitação é um direito, sem ela nada feito”, "O custo de vida aumenta, o povo não aguenta" - três de várias frases que esse mesmo povo entoou a plenos pulmões enquanto desfilava pela calçada sob o olhar atento de alguns turistas, debruçados nas janelas de estabelecimentos de Alojamento Local.
Intervenção do Estado
"Temos três reivindicações principais. A primeira é o fim imediato dos despejos, porque nenhum Governo que diz querer resolver o problema da habitação pode lidar com essa contradição de permitir que as pessoas sejam despejadas por qualquer motivo, inclusive para a casa estar vazia. A especulaçao é quem dita os despejos e isso é insustentável", aponta Bernardo Alves, do coletivo Habitação Hoje!, que convocou a manifestação, à qual se juntaram vários movimentos e na qual marcaram presença figuras políticas dos partidos à Esquerda do PS.
Ricardo, "tripeiro de gema", a poucos passos, dá razão a Bernardo. Conta que a avó, de 88 anos, foi despejada pelo senhorio da casa onde vive há 15 anos sem nunca se atrasar na renda: "Não deu qualquer justificação a não ser a de que quer investir. Mandou uma simples carta a dizer que tinha de sair no fim de dezembro. É impossível pagar uma renda no centro da cidade."
Daí que a segunda reivindicação do coletivo passe por alargar o parque público habitacional. "O Estado tem que dar essa resposta, com casas com rendas em função dos rendimentos das famílias. A renda acessível de que se tem falado não cumpre esse papel, é importante que essas politicas deixem de existir e que a habitação social seja estimulada", argumenta o representante do Habitação Hoje!, acrescentando que, para esse investimento, é imperativo utilizar o património devoluto das cidades. "No Porto existem 20 mil casas vazias. A estatística diz que metade está em bom estado de conservação. Há casas prontas a habitar e há pessoas a precisar de casa. Só falta vontade política de ir contra os lobbies dos senhorios, da especulação imobiliária e da banca."
Sem surpresas, o poder local não teve tréguas, com vários manifestantes a erguerem cartazes e a fazerem soar acirradas palavras de ordem contra o presidente da Câmara do Porto e aquilo que dizem ser a criação de uma cidade para turistas e estrangeiros ricos, que despe de portuenses o centro da cidade. As cartolinas e pedaços de cartão erigidos no ar, pousados no chão e agarrados às letras gigantes que anunciam o nome da cidade em frente à Câmara gritam um Porto "torto", "morto", "porno".
Atrás de uma faixa branca que desfila por Santa Catarina, Marília Bruno, brasileira na casa dos 30 a viver no Porto, salienta que conseguir um crédito à habitação é um dos principais obstáculos para imigrantes e população em geral: "É um problema público que precisa de ser visto. A primeira habitação teria que ser um direito garantido, seja por arrendamento ou compra. A primeira habitação tem de ser um direito constitucional. Aliás, é um direito constitucional, só tem de ser cumprido."
Um pouco atrás, Ivo Oliveira, mais velho que Marília, lamenta que as cidades estejam à mercê de "lógicas absolutamente especulativas" e julga "insuficientes" as medidas recentemente anunciadas pelo Governo, que "não conseguem responder à dimensão do problema" que tem atirado cada vez mais pessoas para "condições de debilidade económica". "Estou aqui também a pensar nos meus filhos. Os mais novos estão numa situação extremamente precária".