O processo para a reforma da Igreja teve início em outubro de 2021, quando o Papa anunciou um processo de consulta, a nível mundial e com a duração de dois anos, envolvendo religiosos e leigos. Esta auscultação pode contribuir para a discussão de temas delicados, como a ordenação de mulheres ou o casamento dos padres.
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Mas recuemos um pouco no tempo. Em dezembro de 2013, Francisco publicou a primeira Exortação Apostólica, convidando a uma nova etapa da evangelização e indicando caminhos que a Igreja deveria seguir nos anos seguintes. "Evangelii Gaudium", em português "A Alegria do Evangelho", foi um texto programático para o primeiro ano de pontificado, mas serviu de indicativo para reformas nas estruturas da Santa Sé.
No mesmo ano, criou um conselho de cardeais para estudar um projeto de revisão da Constituição Apostólica "Pastor Bonus", sobre a Cúria Romana, datada de 1988 e promulgada por João Paulo II.
Ainda em 2013, durante o verão, tinha começado a ouvir especialistas sobre como deveria reformar o Instituto para as Obras de Religião (IOR), o designado "Banco do Vaticano" (envolvido em escândalos de má gestão, branqueamento de capitais, opacidade, peculato...), mandando investigar uma a uma as 19 mil contas da instituição. O escândalo "Vatileaks", que veio à tona em 2012, envolveu documentos secretos que revelaram a existência de uma ampla rede de corrupção e favoritismo relacionados com contratos. Francisco aprovou as reformas do IOR em 2014 e renovou os estatutos em 2019. Como arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio já havia enfrentado um escândalo financeiro do Banco de Crédito Provincial, que envolveu o arcebispado.
Combater a pedofilia
Entre julho e agosto (meses em que os Papas, à exceção de Francisco, se retiram para descansar em Castel Gandolfo), ainda no ano de 2013, assinou outro decreto por decisão própria que reformou o direito penal e administrativo do Vaticano, endurecendo as penas dos delitos relacionados com a corrupção e o branqueamento de capitais e as penas relativas a abusos sexuais de menores. Foi mais um passo em frente na luta contra a pedofilia no clero iniciada por Bento XVI. Francisco também suprimiu a prisão perpétua: o máximo de uma condenação no Vaticano passou a ser 35 anos. Para ele - e disse-o várias vezes ao longo dos anos -, a prisão perpétua era o mesmo que "uma pena de morte escondida".
As consequências do apertar do cerco aos crimes financeiros tornaram-se mediáticas em 2018, com a primeira condenação no Vaticano por lavagem de dinheiro. Angelo Proietti, administrador de uma construtora italiana, foi considerado culpado num processo que envolvia uma conta do IOR e viu ser-lhe aplicada uma pena de prisão de dois anos e meio. O processo de investigação foi iniciado pelas autoridades da Santa Sé em 2014 e, dois anos mais tarde, Proietti também enfrentou a justiça de Roma por fraude. A condenação de 2018 acabou por resultar da colaboração estreita entre as autoridades do Vaticano e a magistratura italiana.
Quatro anos mais tarde, o Tribunal de Recurso do Vaticano confirmou a sentença aplicada em primeira instância a Angelo Caloia: oito anos e nove meses de prisão. Presidente do IOR durante 20 anos (de 1989 a 2009), foi condenado em 2021 por peculato e outros crimes relacionados com propriedades da instituição, ocorridos entre 2001 e 2008. Em causa estava a venda de 29 imóveis, em Roma, Milão e Génova, tendo sido detetadas irregularidades em 20 desses negócios. A confirmação da pena foi anunciada em julho de 2022 mas o caso tinha sido revelado em 2014, o que diz bem da complexidade do processo, que envolveu também o advogado Gabriele Liuzzo, que era assessor jurídico do IOR.
Em 2019, o Papa aboliu o segredo pontifício para os casos de violência sexual e de abusos sexuais de menores cometidos por clérigos e inseriu a pornografia infantil nos crimes mais graves. O segredo pontifício era imposto em assuntos de particular gravidade, com o objetivo de proteger uma instituição, respeitar a intimidade das pessoas, manter a autonomia da Igreja Católica e facilitar o normal funcionamento das instituições ou o bem comum.
Em dezembro de 2020, criou uma lei que retira a gestão de fundos da alçada da Secretaria de Estado do Vaticano. O documento papal "reduz o número de dirigentes económicos na Santa Sé e concentra a administração, a gestão e as decisões económicas e financeiras nos departamentos criados para esse fim", como a Administração do Património da Sé Apostólica. Passou assim a haver maior controlo dos fundos provenientes das doações dos fiéis.
Outra das alterações que introduziu nas normas do Direito Canónico foi a possibilidade de redução das condenações, em casos de boa conduta. A notícia surgiu em fevereiro de 2021, ao ser anunciado que a redução poderia ir de 45 a 120 dias por cada ano de prisão cumprido. Em paralelo, foram criadas penas alternativas, como o trabalho comunitário.
Nova Constituição para a Cúria Romanda
A 19 de março de 2022, o Sumo Pontífice promulgou a nova Constituição para a Cúria Romana, os serviços centrais de governo da Igreja Católica, assinalando os nove anos do pontificado. O texto dá corpo uma reforma interna, com a ajuda de um inédito conselho consultivo de cardeais representantes dos cinco continentes. A nova Constituição Apostólica, "Praedicate Evangelium" (em português, "Pregai o Evangelho"), propõe uma Cúria mais atenta à vida da Igreja Católica no mundo e à sociedade, rejeitando uma atenção exclusiva à gestão interna dos assuntos do Vaticano. Entrou em vigor a 5 de junho e resultou de um trabalho de oito anos.
Um dos efeitos imediatos da nova constituição foi amplamente noticiado em agosto de 2022, quando entrou em vigor uma carta apostólica que introduziu alterações diretas ao funcionamento da Opus Dei, a única prelatura pessoal da Igreja Católica em todo o Mundo. No documento "Praedicate Evangelium", Francisco tinha atribuído ao Dicastério para o Clero a competência sobre tudo o que respeita às prelaturas pessoais e, depois, redigiu outro documento com as novas normas para aquela organização, fundada em Espanha em 1928.
Através da carta apostólica escrita em forma de motu proprio "Ad charisma tuendum" (em português, "Para tutelar o carisma"), com data de 14 de julho e em vigor desde 4 de agosto, o Papa argentino substituiu alguns artigos da Constituição Apostólica "Ut sit", de 1982. Da autoria de João Paulo II, essa constituição deu à Opus Dei a qualidade de prelatura pessoal. A organização, cuja designação significa "Obra de Deus", foi fundada pelo padre espanhol Josemaría Escrivá de Balaguer, com a finalidade de colaborar na missão evangelizadora da Igreja Católica, e estendeu-se a Portugal em 1946.
Além de ter de responder perante o Dicastério para o Clero, o responsável máximo da Opus Dei passa a apresentar relatórios anuais sobre o desenvolvimento do trabalho apostólico da prelatura. Por outro lado, esse mesmo responsável deixa de poder ser nomeado bispo. "É necessária uma forma de governo baseada mais no carisma do que na autoridade hierárquica. Portanto, o prelado não será honrado com a ordem episcopal", referia, a este propósito, a carta apostólica. Francisco determinou que o responsável passa a ter o título de "protonotário apostólico supranumerário" e que seja tratado por "reverendo monsenhor".
Outra das alterações mais importantes incluídas na nova constituição noticiadas pela Imprensa prende-se com a criação da Secretaria de Comunicação, que reúne as diferentes fontes de informação do Vaticano. Também a criação do Serviço de Desenvolvimento Humano é considerada uma das maiores mudanças do novo documento. Esse serviço reúne as questões sociais da Igreja ou da Secretaria para a Economia, que administrará todas as finanças do Vaticano, incluindo os fundos da Secretaria de Estado.
Novidade foi também o fim da distinção entre congregações e conselhos pontifícios, passando os vários "ministérios" da Santa Sé a assumir a denominação de dicastérios, em vez de congregações. Assim, a Cúria Romana passou a ser composta pela Secretaria de Estado, pelos dicastérios e pelos organismos, todos juridicamente iguais entre si.
Francisco, que sempre apontou as periferias "culturais e religiosas" como prioridade da missão da Igreja Católica, foi muito além das reformas legais. Abriu as portas às mulheres para cargos até então apenas desempenhados por homens, chocou os conservadores com as suas declarações acerca da homossexualidade, nunca esqueceu os pobres, os migrantes, nem os jovens. Não se cansou de criticar o capitalismo, a sociedade individualista, o terrorismo, a guerra, o tráfico de seres humanos. Acima de tudo, sempre foi livre nos seus pensamentos e na maneira de os revelar: falando claramente sobre qualquer assunto, até os temas tabu, mesmo tendo consciência da azia que isso provocava entre os partidários de uma Igreja Católica mais conservadora.