Grande Prémio em Cannes, “All We Imagine As Light – Tudo o Que Imaginamos Como Luz” chega esta quinta-feira às nossas salas e é um dos filmes do ano que está a terminar.
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Realizado pela jovem indiana Payal Kapadia, passa-se em Mumbai, e cruza a história de duas mulheres que partilham um quarto, uma enfermeira que viu o marido partir para o estrangeiro e uma jovem em busca de um local para ter alguma intimidade com o namorado. Ainda em Cannes, estivemos a conversar com a realizadora.
Mumbai é uma verdadeira personagem do filme.
Tive muita sorte em poder filmar em Mumbai. É a cidade onde nasci, mas nem sempre vivi lá. Estou sempre a partir e a regressar. Assim consigo ver melhor as mudanças que se operam na cidade. É uma cidade maravilhosa, mas cheia de contradições. É uma cidade onde as mulheres podem andar mais à vontade na Índia, mas também é uma cidade com uma enorme divisão entre ricos e pobres. Se não tivermos muito dinheiro, não é uma cidade confortável para viver.
E as principais personagens femininas, de onde é que lhe veio a ideia para as criar?
Há seis anos que andava a tentar fazer este filme. Pelo meio fiz outro, de não ficção. Mas as personagens mantiveram-se sempre as mesmas. Queria que fossem muito diferentes, apesar de viverem juntas. E guardam segredos uma da outra. Uma não lhe diz nada sobre o marido, a outra sobre o namorado. Estava interessada nesta proximidade. Foi por aí que fui construindo as personagens e a história.
A história da personagem cujo marido há muito saiu do país para trabalhar é muito frequente?
Há uma grande tradição de emigração na costa oeste da Índia, que nos liga ao resto do mundo. O estado de Kerala tem uma longa história de emigração. Mesmo quando Vasco da Gama chegou à Índia, foi para Kerala. Kerala é uma espécie de porta para a Índia. Mas também é uma porta para a emigração. Há homens que partem para trabalhar noutros países e não regressam durante muitos anos.
Foi esse também um dos pontos de partida da história?
Sempre me interessou uma personagem assim. Uma mulher que não conhece bem o marido mas continua casada. É uma situação estranha que me fez pensar muito. Na Índia, uma mulher divorciada ou viúva não consegue casar outra vez com muita facilidade. Não é algo que seja bem visto. A minha avó enviuvou aos 50, viveu até aos 95, mas nunca mais teve nenhuma relação. Há advogadas que explicam às mulheres os seus direitos, mas poucas se interessam por saber.
Sente-se que há pessoas que estão completamente deslocadas naquela cidade.
É uma das contradições de Mumbai. É uma cidade que te dá tanto mas que também te desumaniza. E que te expulsa. Se a tua casa se inundar, tens de olhar em frente e continuar a viver.
Está otimista em relação ao futuro, nomeadamente em relação â emancipação das mulheres num regime de castas?
Não sou otimista, mas tenho esperança, são coisas diferentes. Por vezes sinto-me muito confusa.
O seu cinema, nomeadamente este filme, tem uma motivação política?
Sim, mas todo o cinema tem sempre alguma motivação política. No sentido mais lato do termo política. O que estava a tentar era refletir sobre alguns temas que se atravessavam na minha vida. Pequenas histórias sobre questões que me incomodavam.
No final do filme, há um homem que vem literalmente do mar. Foi um elemento surreal que quis adicionar ao filme?
Quis que o filme tivesse a forma de uma fábula. No folclore da minha região há muitas histórias onde os homens são representados por fantasmas, escondidos numa árvore, ou tornando-se a própria árvore. Ou num pássaro. São histórias que passam de geração para geração, mas eu queria fazer uma fábula contemporânea. É uma forma de representar o marido. Pode até ser um sonho. Mas é ela que tem de ultrapassar os demónios dentro dela. Gosto muito de misturar fantasia com a realidade.
No seu filme há nudez, cenas de sexo, beijos, tudo situações contra as regras do cinema indiano. Fê-lo como uma espécie de manifesto?
Recentemente há muitos filmes com cenas de beijos. Em especial filmes da Netflix. Porque os filmes da Netflix e da Amazon não são censurados, ainda. É por isso que a sexualidade é mais apresentada hoje no cinema. Mas acho que a censura vai começar a atuar.
No seu filme, os homens são representados com a mesma ternura que as mulheres.
Não acredito numa forte oposição binária. Ou que se possa dividir o mundo entre preto e branco. Na Índia, os homens enfrentam também problemas que são os seus. O sistema de casamentos arranjados afeta também os homens.
Pode falar um pouco do ritmo do filme?
Estava interessada em duas temporalidades. A primeira parte do filme é mais rápida, como a própria cidade. Na segunda parte, o tempo estende-se mais. No cinema pode-se jogar muito com o tempo. Quando se está numa cidade como Mumbai nunca parece que temos tempo livre. Temos sempre qualquer coisa para fazer. E não temos férias pagas, como nos países europeus. Não há regras, trabalha-se muitas horas seguidas. Tirar um dia de folga é como um escape à tragédia do quotidiano.
Como é que trabalhou com as duas atrizes principais?
Passei muito tempo com elas. Fizemos um workshop um mês antes da rodagem. Elas mudaram muitos diálogos, foi um processo muito colaborativo. Filmámos todas as cenas numa sala com uma pequena câmara e depois vimo-las todas. Kerala tem uma única língua, mas sotaques e calão muito diferentes. Demos a cada uma das personagens um tipo de linguagem diferente. Todos os atores trouxeram algo de si para o filme.
Como foi fazer um filme numa língua que não é bem a sua?
Comecei a pensar no filme quando ainda estava na escola de cinema. Queria fazer uma curta-metragem sobre um hospital. As mulheres que vão trabalhar para os hospitais em Mumbai são muitas vezes de Kerala. No filme vemos a médica a lutar contra as línguas. Queria falar sobre essa alienação que se sente quando estamos numa cidade de que não falamos a língua. Como nos sentimos ainda mais estranhos. Mesmo que fosse um desafio adicional para mim fazer este filme.
Uma enfermeira ensina jovens sobre educação sexual. Qual é a situação na Índia?
Na Índia pode-se usar contracetivos e o aborto é completamente legal, mas na maior parte dos casos as pessoas não têm informação. Não há educação sexual nem conhecimento sobre o que se pode e o que não se pode fazer. É esse conhecimento que ela está a passar.
A Payal nasceu na Índia, o filme passa-se na Índia, mas o financiamento veio todo do estrangeiro.
Na Índia não há apoios públicos para o cinema. Só alguns estados o têm. Não queria entrar no circuito do financiamento privado. E quando saí da escola de cinema conheci estes amigos produtores com que trabalho desde essa altura. Conhecemos pessoas com quem gostamos de trabalhar e passar o nosso tempo. Não andava à procura de fundos franceses só por serem franceses, mas por gostar de trabalhar com estas pessoas.
Desde quando é que se interessou pelo cinema, como forma de se exprimir?
Quando estava na universidade, instalei-me de novo em Mumbai. Havia três grandes festivais e um deles mostrava filmes internacionais. Havia um para documentários e outro para curtas-metragens e filmes experimentais. Foi um bom momento para ser estudante em Mumbai. Como os bilhetes não eram caros, passava imenso tempo a ver filmes. Lembro-me de um programa excelente de filmes da escola, é nas curtas-metragens que se pode experimentar.
Então não começou logo por estudar cinema?
Fiquei curiosa de saber onde é que eles faziam aqueles filmes. Andei à procura e pensei que poderia ser uma coisa que eu pudesse fazer. E inscrevi-me. Na universidade, estava a estudar Economia. Gosto de Matemática. Tinha 19 anos e interessava-me perceber como o mundo estava ligado através da Economia. Teve um importante papel na forma como eu olho para as coisas.
E agora, como é que vê o futuro?
Eu sei, a pressão, agora todos os filmes que fizer têm de vir a Cannes. Quero continuar nesta zona onde a não ficção chega à ficção e a fazer filmes onde possamos ter sentimentos crus. Gosto disso. Realizar um filme é como bordar, como fazer uma colcha com remendos daqui e dali, que possam parecer bonitos todos juntos.