Uma mulher francesa cujo marido admitiu ter recrutado dezenas de desconhecidos para a violarem enquanto ela estava drogada afirmou, durante o julgamento do caso, esta quinta-feira, que a polícia a salvou ao descobrir os crimes.
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“A polícia salvou a minha vida ao investigar o computador do Dominique”, contou Gisèle no tribunal em Avignon, no sul de França, referindo-se ao marido, um dos 51 alegados abusadores em julgamento. Agora com 71 anos, a mulher revelou a sua dor em quase 90 minutos de testemunho, contando o momento, em novembro de 2020, em que os investigadores lhe mostraram pela primeira vez as imagens de uma década de abusos sexuais orquestrados e filmados pelo marido.
“O meu mundo está a desmoronar-se. Para mim, está tudo a desmoronar-se. Tudo o que construí ao longo de 50 anos”, disse Gisèle, parando de falar apenas para beber um copo de água.
A vítima contou que considerava o marido um “super homem”, quando foi convidada a falar com eles pela primeira vez, enquanto a filha e os dois filhos assistiam ao depoimento. Nessa reunião, foram mostradas a Gisèle imagens “bárbaras” em que estava "deitada na cama, imóvel, a ser violada", recorda, enquanto o marido a ouvia.
“Trataram-me como se fosse uma boneca de trapos”, contou ao coletivo de cinco juízes, acrescentando que só teve coragem de ver o vídeo em maio de 2024.
Os advogados de alguns dos arguidos questionaram na quarta-feira se o casal tinha tido uma relação menos tradicional, ou se era mesmo possível que Gisèle P. não se tivesse apercebido de nada durante toda a década dos abusos.
"Não me falem de cenas de sexo. São cenas de violação", realçou Gisèle, esta quinta-feira, enfatizando que nunca praticou swing (prática sexual em que dois ou mais parceiros trocam de casais), ou qualquer outra forma de sexo menos comum.
"Nunca fui cúmplice"
A vítima reiterou que "nunca foi cúmplice" e que nunca "fingiu estar a dormir", quando questionada pelo juiz Roger Arata.
Gisèle insiste que o julgamento seja público para que todos os factos do caso possam ser conhecidos. “Estou a falar em nome de todas as mulheres que foram drogadas sem o saberem, em nome de todas as mulheres que talvez nunca o saibam... para que nenhuma mulher tenha de sofrer” a mesma coisa no futuro, disse.
Gisèle está a divorciar-se do marido, que admitiu na terça-feira tê-la drogado com comprimidos para dormir e depois ter recrutado dezenas de desconhecidos para a violarem. O marido da vítima foi descoberto, "por acaso", quando foi apanhado a filmar saias de mulheres num supermercado local.
O agressor “vai voltar a explicar as razões que o levaram a fazer isto. Ele vai explicar-se e justificar-se, se é que pode haver uma justificação para isto, porque é imperdoável”, notou a advogada da vítima, Beatrice Zavarro, à AFPTV.
O pai de três filhos, de 71 anos, documentou as suas ações com uma precisão meticulosa num disco rígido, numa pasta intitulada “abuso”, relatou o investigador principal do caso, Jeremie Platiere, ao tribunal, na quarta-feira. A polícia francesa conseguiu, dessa forma, localizar mais de 50 homens suspeitos de terem violado Gisèle P. enquanto esta estava drogada.
Um terço deles foi identificado através de um software de reconhecimento facial, contou Platiere, que realça ter destacado meticulosamente os investigadores "que tivessem estômago" para enfrentar os vídeos e imagens de abuso do caso. A polícia elaborou uma lista de 72 pessoas suspeitas de terem abusado de Gisèle.
Os investigadores contaram cerca de 200 casos de violação, a maioria dos quais cometidos por Dominique, e mais de 90 por desconhecidos recrutados através de um site online para adultos.
"Sinto-me enojada"
Gisèle disse ter reconhecido apenas um dos seus alegados violadores, um homem que tinha tido conversa sobre ciclismo com o seu marido em casa.
“Via-o de vez em quando na padaria, cumprimentava-o, mas nunca pensei que ele viesse violar-me”, relatou. “Sinto-me enojada”, acrescentou, apelando aos acusados que, "pelo menos uma vez na vida, assumam a responsabilidade" pelos atos cometidos.
Os homens receberam “instruções rigorosas, houve informação clara e transparente” sobre o que estava a acontecer, disse o advogado do marido, Zavarro.
“Se estes homens foram [a casa do casal], foram com conhecimento do que estavam a fazer. É isso que Dominique P. vai dizer”, acrescentou.
As agressões ocorreram entre julho de 2011 e outubro de 2020, principalmente na casa do casal em Mazan, uma aldeia de 6 mil habitantes na região sul de Provença. A maioria dos suspeitos, se forem condenados, podem ter de cumprir até 20 anos de prisão por violação agravada.
Dos 51 arguidos, 18 estão em prisão preventiva, incluindo Dominique, enquanto 32 outros estão a assistir ao julgamento em liberdade.
O último suspeito, ainda a monte, será julgado à revelia, devendo as audiências prolongar-se por quatro meses, até 20 de dezembro.