Corpo do artigo
Ocenário era frondoso e o bucolismo do lugar fazia lembrar os jardins onde, provavelmente, Édouard Manet pintou, em 1862, o célebre quadro "Almoço na Relva". Ontem, no Parque da Cidade de Paredes, muitas famílias estenderam a toalha de mesa sobre o verde da paisagem e almoçaram à fartazana. Com música, animação, fotógrafos "à la minute". O ambiente e as tradições do séc. XIX sobrevoaram o local.
Debaixo de um sol quente de Agosto os 500 chapéus distribuídos à entrada da festa voaram num ápice. "Já não há mais. Veio mais gente do que estava previsto", dizia uma das meninas da organização. Enquanto entregava uma toalha e preenchia a ficha de inscrição a um casal com filhos, escutavam-se sonoridades, davam-se os primeiros toques no cavaquinho, afinavam-se gargantas "Linda moça trigueira/Mas trigueira rainha", cantarolava a moça do Rancho Juvenil Senhora da Hora de Vilela. Eram 13 horas e o prenúncio de uma tarde de convívio à moda antiga.
O fotógrafo "à la minute" já fazia retratos, fixava instantes, procurava sombras na paisagem "Vou tirar 60 fotos. Faço isto por prazer e também, para ganhar algum dinheiro", conta Albino Rodrigues, cujo cunhado ganha a vida a tirar "bonecos" no Bom Jesus de Braga. Enquanto exibe a velha relíquia (com lentes antigas Carl Zeiss) arrasta o tripé e ajusta a objectiva.
O vereador da Cultura, Pedro Mendes, passeia-se pela relva e sorri de espanto perante o arraialde gente"Não contava com tantas pessoas. O piquenique faz parte de uma estratégia de animação. Quando era miúdo, era frequente este tipo de iniciativas. A festa da Nossa Senhora da Saúde, em Penafiel, perdura na minha memória. O que estamos a fazer é também um acto de cultura", garante.
A iniciativa tem outros andamentos como o célebre quadro de Manet merece ser revisitado pela vida fora, a Câmara não só avivou memórias ao recriar uma tradição popular, como propõe reunir o conjunto de trabalhos (fotografias, desenhos, pinturas) e convidar a população para a exposição, a realizar daqui a dois meses, na Casa de Cultura de Paredes. "É uma forma de levar as pessoas a admirar arte. Com uma particularidade: os actores da exposição são os protagonistas da festa", lembrou.
Enquanto uns alimentam o corpo, outros saciam o espírito e deliciam-se ouvindo pequenas peças do reportório barroco interpretado pelo Grupo de Música Antiga de Paredes. "É só para abrir apetites", diz Andreia Morris, flautista de contralto. Tinha acabado de tocar com os amigos "Ragtime" e entre a assistência, estava o motorista José Manuel, mais a mulher, três filhos e outros amigos "Estou a viver um dia histórico. Vim cá pela mão da minha filha Florbela e estou feliz", sorri.
Feitas as contas nem é preciso muito dinheiro para fazer cultura. Com um pouco de imaginação e aproveitando a genialidade de uma tela famosa, "Le Déjeuner sur L´Herbe", uma parte da população de Paredes fruiu um dia de sol. Com música, arte, pintura, teatro. E reviveu nostalgias a fazer lembrar os tempos dos avós.
"Evento é homenagem ao génio artístico do pintor"
Paulo Archer
Estudante e pintor
"Vou fazer alguns exercícios do género paisagem com modelo vivo. Não é uma natureza morta, antes um pastel seco à vista", esclarece Paulo Archer, estudante do 5º ano de Pintura da Faculdade de Belas-Artes do Porto.
Enquanto fala, faz uma pausa no esboço, croquis de um desenho célebre"A temática aproxima-se dos tempos do Manet e enquadra-se no seu contexto histórico e artístico", adianta. Quanto ao pintor, Archer não tem dúvidas: "É um dos grandes modernistas e este evento também pode constituir uma homenagem ao génio artístico do pintor" observa.
Confesso admirador de Lucien Freud, José Rodrigues e Paulo Rêgo, o pintor de domingo mostrou-se "encantado" pelo convite "Pintar neste ambiente com gente ao lado é muito gratificante".
Mulher nua e escândalos
O quadro de Manet é uma obra do impressionismo e está exposto no Museu D´Orsay, em Paris, mas até chegar lá, os espíritos mais puritanos ousaram recusar a sua apreciação pública. Em Paris, houve escândalo e as entidades oficiais da época (1862) proibiram a sua exibição. Émile Zola, escritor de mente lúcida deu a resposta "Aquela mulher nua escandalizou o público que não viu mais nada para além dela. Valha-nos Deus!", escreveu.
O piquenique no parque de Paredes decorreu conforme a tradição. Tudo estava no seu lugar. Em Outubro/Novembro o material produzido será objecto de exposição e outro "Almoço na Relva" será apreciado.