Antigo seminário dominicano revisitado no filme "O casarão", nas salas esta semana.
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Na Aldeia Nova, perto de Fátima, ergueu-se durante muitos anos um seminário da Ordem Dominicana muito avançado para o seu tempo. A morte do pai, que por lá passou, levou o documentarista Filipe Araújo a procurar nas ruínas os vestígios do seu passado. O resultado é "O casarão" que, depois de passar pelos Caminhos do Cinema Português, chega amanhã às salas. A estreia em Espanha também está assegurada.
Este casarão estava na memória da sua família. Quando é que percebeu que havia filme a fazer?
Não foi nada intencional, de início. Quando o meu pai faleceu, em 2008, fizeram um livro de homenagem na universidade e pediram-me para procurar bibliografia que pudesse não estar identificada. Deparei-me com um blogue de antigos seminaristas e foi aí que tive conhecimento que este espaço, que sempre teve lugar nas histórias que o meu pai me contava na infância, estava à venda.
O que fez então?
Os dominicanos iam-se desfazer daquele espaço, porque já não tinha uso nem eles tinham meios para o manter. Decidi pegar num amigo e ir lá. A minha ideia era apenas ter contacto com essa memória física antes dela desaparecer e perceber o que ainda guardava do passado.
Como é que as pessoas da Aldeia Nova receberam a ideia de se fazer um filme?
Para quem tinha ficado na terra e crescido à sombra daquele espaço era uma questão crucial. Fui percebendo também o papel do António, do caseiro, que estava muito agarrado àquele passado e era uma espécie de pivô entre o passado e o presente, o mundo secular e o mundo religioso.
Que importância teve o seminário para a região?
O seminário trouxe eletricidade, água, foi um polo cultural, tinha cinema, trazia vida à terra. A aldeia cresceu à volta daquela casa. E era gente que estava à frente do seu tempo. A Aldeia Nova foi o primeiro sítio no distrito em que a mulher passou a ganhar o mesmo que o homem. Eram ideias postas em prática a partir do seminário.
Como está a localidade hoje em dia?
O fecho do seminário correspondeu a um fim de ciclo. É também a questão da desertificação do interior. Estamos a falar agora de uma aldeia com uns 200 habitantes, metade dos quais reformados, 30 famílias emigradas, 40 casas devolutas. O único café que existia foi fechado pela ASAE. Sente-se que a aldeia está a desaparecer.
Como é que o seminário se tornou progressista?
Houve um frade que veio do Canadá, com ideias novas, professores de várias nacionalidades. Percebe nos textos que há uma quase revolução. Essa foi outras das minhas motivações, o paradoxo de neste espaço que quase podia ser uma prisão, os miúdos terem acesso a liberdade e mais mundividência do que o regime passava.
O filme é um projeto muito pessoal. A quem diria que se destina?
A católicos progressistas, o filme diz-lhes qualquer coisa. Mas pode tocar num público bastante mais geral. Falamos da memória, do crescimento, da formação, e de valores. Da liberdade.
Memória
João de Melo: escritor, seminarista
Hoje com 72 anos, o escritor João de Melo nasceu na ilha de São Miguel, nos Açores, que deixou aos 11 anos para prosseguir os estudos no continente. Ingressa então no Seminário dos Dominicanos, onde permanece entre 1960 e 1967. Juntando-se a textos de outros seminaristas encontrados por Filipe Araújo, são do livro mais famoso de João de Melo, o romance "Gente feliz com lágrimas", algumas das passagens que se ouvem em "O casarão", cedidas pelo autor ao autor do filme.