Uma das expressões mais ouvidas, e que damos por garantida, é a de que "não pode haver despedimentos de funcionários públicos" exceto se forem por mútuo acordo. Ora, o que trazemos nesta edição é uma ideia diferente: a de que o Tribunal Constitucional (através do Acórdão 04/2003) permite a aplicação de mecanismos de rescisão dos contratos comuns também aos funcionários públicos - como se afere pelas respostas dos membros do painel.
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Não se trata de se considerar, neste momento, os despedimentos como a ferramenta certa para se reduzir o peso do Estado mas sim a de compreender, juridicamente, o que pode ou não surgir no horizonte. Ou seja, tornar claro que as reformas em curso podem ir para além de um falso 'tabu constitucional': a de que não se pode ir além dos limites do "mútuo acordo".
[perguntas]
[1] Considera ser necessário mudar a Constituição caso se pretenda despedir funcionários públicos e cumprir o programa da troika?
[2] Há alguma forma eficaz de penalizar as entidades públicas pelos atrasos nos pagamentos aos fornecedores, sabendo-se que os tribunais funcionam a meses/anos de distância da entrada de uma ação?
[respostas]
Agostinho Guedes, diretor da escola de direito da Universidade Católica do Porto
[1] Não. A Constituição não confere aos funcionários públicos o direito a um emprego vitalício (v. acórdão do Trib. Constitucional n.º 4/03), nem o despedimento ou outros modos de extinção estão proibidos.
[2] Uma solução possível seria assegurar, em caso de atraso, o pagamento direto aos fornecedores pela Administração central, a qual depois cobraria essas quantias às entidades públicas faltosas ou deduziria dos montantes que estas devessem receber da mesma Administração Central.
Alberto Pinto Nogueira, procurador-geral adjunto
[1] Não vejo o que é que a Constituição tem a ver com o assunto. O que, a meu ver, poderá ser necessário mudar, é a legislação ordinária respeitante à matéria.
[2] A regra é a de que as cobranças coercivas são determinadas pelos tribunais competentes. Como devedor, o Estado está na posição de um qualquer particular, sendo lamentável as óbvias demoras judiciais, por razões conhecidas.
Carlos Moreno, juiz jubilado do Tribunal de Contas e professor de Finanças Públicas
[1] O problema não está em mudar a CRP ou despedir funcionários públicos. Está em reduzir a despesa de funcionamento, de acordo com os critérios da economia, eficiência e eficácia, concentrando-a na satisfação das necessidades públicas prioritárias e essenciais à dignidade humana e dai tirar as consequências. Este exercício devia ter começado há vários anos.
[2] Exatamente as mesmas que o fisco aplica aos contribuintes faltosos.
Manuel Sousa, presidente da delegação do Porto do Sindicato dos Funcionários Judiciais
[1] A Constituição não impede os despedimento de funcionários públicos, ou seja, apesar de ouvirmos constantemente expressões como "emprego para a vida" ou "emprego vitalício", estes podem ser afastados ou despedidos (casos de inadaptação ou em consequência de um processo disciplinar). O que está constitucionalmente vedado são os despedimentos coletivos e os despedimentos sem justa causa. E aqui, um despedimento apenas por razões de equilibro financeiro seria diretamente inconstitucional. Mas um despedimento em massa seria também indiretamente inconstitucional se de tal resultar a maior dificuldade de o Estado assegurar funções que a Constituição lhe impõe prosseguir.
[2] A Comissão Europeia refere que os atrasos de pagamentos continuam a ser uma prática comum em todo o espaço europeu.
Joana Pascoal, advogada e atual presidente da Associação Jovens Advogados
[1] Não, se optarmos por uma ação disciplinar eficaz. Os despedimentos com justa causa aliados a cortes de subsídios erradamente pagos a funcionários públicos, permitirão a almejada poupança. Evite-se cortes cegos e injustos.
[2] Crie-se uma responsabilidade solidária entre a entidade pública e o responsável pela decisão que originou a dívida. Em última análise, o próprio Ministro das Finanças, ou até o Primeiro-Ministro poderiam ver os seus bens penhorados para pagamento de dívidas.
Luísa Neto, jurista e professora associada da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
[1] O Governo anunciou rescisões por mútuo acordo. Ainda que assim não fosse, existe legitimidade para modificações estruturais com consequências no plano da relação laboral efetiva, desde que com os limites gerais dos artigos 18º e 53.º da Constituição.
[2] O Programa de Regularização Extraordinária de Dívidas do Estado aprovado em 2008, criou um balcão único junto do qual os credores privados do Estado podem solicitar o pagamento das dívidas certas, líquidas e vencidas.
Maria Manuela Silva, diretora do Departamento de Direito da Universidade Portucalense
[1] A Constituição não será o obstáculo ao cumprimento do programa. Há provavelmente que efetuar alterações, nomeadamente legislativas, mas não se impõe mudar a constituição mas sim respeitar a mesma.
[2] Não existe outra forma a não ser o recurso aos tribunais mas estes têm de ser mais eficazes. É importante apostar em medidas que permitam melhorar em termos de celeridade e eficácia. O Governo deve implementar medidas que facilitem o cumprimento das obrigações dessas entidades.