Quarenta anos depois do 25 de Abril, talvez não exista setor mais incrustado na inércia, sofisma e corporativismo que o da justiça. Quase tudo em Portugal mudou para melhor - apesar de tantos erros -, mas a justiça ficou para trás. Hoje, as grandes questões da sociedade portuguesa já não económicas, políticas ou de segurança. São questões de direito. Decisivas, porque determinam, através do Tribunal Constitucional (TC), que tipo de governação podemos ter; e também determinam porque pode um banco ir à falência sem qualquer consequência face às fraudes imediatamente detetadas.
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Sobre o TC: ambos os lados da barricada sabem agora que há várias leituras possíveis por parte dos juízes do topo do país em relação às decisões económicas que envolvam funcionários públicos. Qual a linha de prumo? Tornou-se mais difícil de compreender, após esta decisão de agosto.
Além disso, o país esperará anos e anos sem fim pelas conclusões sobre o BES, tal como já transcorreram quase seis anos sobre o BPN ou o BPP. Qualquer "vítima" do BES sabe que não tem defesa possível em tempo útil. Conclusão: se o sistema jurídico vivesse dependente dos resultados que produz, já teria falido. Como não depende, vai falindo o país.
[perguntas]
[1] A Contribuição Especial de Solidariedade (CES) é, na sua opinião, mais inconstitucional que o corte de salários dos funcionários públicos?
[2] A "falência" do BES e a sua divisão em BES "bom" e BES "mau" é um artifício jurídico contestável ou uma boa solução?
[respostas]
Alberto Pinto Nogueira, Procurador -geral-adjunto
[1] Não se trata de maior ou menor inconstitucionalidade. Antes que a interpretação e aplicação de princípios e normas constitucionais diferentes conduzem a soluções diversas.
[2] Ver-se-á pelos resultados. Bad bank e good bank são filhos da mesma mãe. A coisa impressiona. Quando os bancos nos provocavam com milhões e milhões de lucros anuais, os contribuintes não tinham nada a ver com isso. Eles corriam riscos, logo mereciam. Agora, pagamos a incompetência e desmandos deles.
Carlos Moreno, Juiz jubilado do Tribunal de Contas e professor de Finanças Públicas
[1] O novo corte nos salários dos funcionários públicos, repescado do Governo Sócrates depois de 3 anos de outros cortes e que duraria até final de 2018, seria inexplicável, injusto, e antimotivação e produtividade dos trabalhadores do Estado. Felizmente, o TC pôs-lhes fim a partir de 2016. Prevejo que as eleições os impedirão já em 2015.
[2] É prematuro avaliar o que se passou com o BES, bem como a bondade das soluções experimentais, cujas sequelas são ainda muito incertas.
Joana Pascoal, advogada e atual presidente da Associação dos Jovens Advogados
[1] Inconstitucional não será, é juridicamente defensável. Porém, a questão é mais política do que jurídica. É uma opção política obter receitas pelo erário público desta forma, ao invés de taxar mais o tabaco ou bens de luxo, por exemplo.
[2] A haver artifício, será financeiro, não jurídico. Todavia, duvido que seja solução eficaz; procura-se preservar a confiança do público alterando o nome do banco, aparentando que tudo o que é tóxico ficou no quinhão da herança do banco antigo. Veremos.
Agostinho Guedes, professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto
[1] Ambos os acórdãos do TC violam a Constituição. Na verdade, pertence ao povo o poder político de fazer escolhas sobre o modo como são gastos os recursos financeiros do Estado (art. 108.º); este poder é exercido através das pessoas eleitas para esse efeito (os deputados - art. 147.º); aquelas escolhas são traduzidas em leis - art. 161.º, alínea c). É certo que as leis não devem ultrapassar os limites estabelecidos pela Constituição, mas o que o TC tem feito é reduzir o âmbito desses limites até ao ponto de impor as suas próprias escolhas - o TC exerce, assim, um poder que pertence originariamente ao povo, sem estar legitimado pelo voto, em violação dos arts. 108.º e 111.º da CRP.
[2] É uma solução que tem pelo menos o mérito de evitar uma repetição do caso BPN.
Luísa Neto, jurista e professora associada da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
[1] A contribuição implica uma diminuição retroativa (ou pelo menos, retrospetiva ) de rendimento já anteriormente calculado de acordo com a carreira contributiva passada, ao invés da mera diminuição de remuneração atual.
[2] É um artificio permitido (e, em certa medida, imposto) por lei, mas que em alguma medida pode contribuir para a desresponsabilização dos infratores e para falsear a concorrência.
Manuel Sousa, presidente da delegação do porto do Sindicato dos Funcionários Judiciais
[1] Ambas são inconstitucionais e o entendimento do TC ao permitir a redução de salários, mesmo com limite temporal, é um grave precedente. Nas situações de crise e de emergência nacional, todos devem ser chamados a contribuir de forma equitativa. E a forma mais justa seria por via fiscal. Ora, os únicos que não podem fugir são os trabalhadores da função pública.
[2] No imediato, parece uma solução. Mas temo bem que venha a ter custos enormes e a serem os mesmos a ter de pagar...
Maria Manuel Silva, diretora do departamento de direito da Universidade Portucalense
[1] Do ponto de vista jurídico, a questão não se pode colocar como sendo mais ou menos inconstitucional. Ou é ou não. Mais uma vez, a análise cabe ao Tribunal Constitucional, que tem de considerar a situação do país e é evidente que qualquer das medidas é impopular.
[2] Poderá ser visto como um artifício jurídico. No entanto, creio que, do ponto de vista económico, foi uma boa medida, que permitirá não contaminar o sistema