Um dos textos precursores da ficção científica, “Micromegas”, de Voltairde, surge agora recuperado numa tradução de Rui Tavares. O conto foi escrito em 1732, inspirado por Jonathan Swift.
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A insignificância do Homem perante a vastidão de todas as coisas sempre fascinou Voltaire. Foram muitos os escritos em que o influente pensador francês escarneceu da suposta grandeza humana, denunciando fragilidades e inconsistências que os poderes, do político ao religioso, se esforçavam em vão por ocultar.
Numa obra tão monumental, da qual só uma ínfima parte está hoje infelizmente disponível nas livrarias, o pequeno “Micromegas” está muito distante de ser considerado um dos seus escritos mais representativos, ofuscado pelo brilhantismo de “Cândido, ou o otimismo” e a sapiência manifestada no “Tratado sobre a tolerância”.
E, todavia, por muito desconsideradas que tenham sido pela crítica, há algo que o tempo não foi capaz de obscurecer nestas escassas dezenas de páginas – ser “um dos manifestos mais claros e desenvoltos do pluralismo cético” de Voltaire, como bem assinala no posfácio Rui Tavares, tradutor da obra.
Influenciado por autores como Jonathan Swift, mas também Rabelais ou Cyrano de Bergerac, o escritor apresenta-nos Micromegas, um gigante que habita num planeta longínquo em torno de uma estrela chamada Sirius.
Nas suas deambulações cósmicas, trava contacto com um ser oriundo de Saturno que, embora também tenha proporções extraordinárias, é bem mais pequeno do que ele, o que faz com que o apelide de anão. Diferenças de tamanho à parte, o entendimento entre ambos é tal que resolvem partir numa expedição espacial que os conduz até ao planeta Terra. Aqui chegados, são tomados pelo espanto ao serem confrontados com a dimensão minúscula dos seus habitantes.
Os seres com que entabulam diálogo são filósofos em viagem que partilham com os viajantes os principais ideais da sua época, para grande espanto destes, convencidos de que seres tão ínfimos eram destituídos até de alma.
É nesta suposta infalibilidade de cada uma das teses apresentadas que o espírito crítico e a contundência verbal de Voltaire vêm ao de cima. Ajustando contas com os partidários de Leibniz ou Descartes, entre outros, Voltaire não se limita a antecipar em muitos decénios a ficção científica tal como a conhecemos: procura, antes de tudo, mostrar, através de um tão engenhoso quanto curto relato, que a dimensão é apenas um ponto de vista.