Novela gráfica de Aimée De Jongh recria "O deus das moscas", de William Golding, de forma memorável.
Corpo do artigo
O crescimento exponencial da adaptação em BD de romances literários tem originado versões que recriam de forma integral e memorável, numa nova linguagem, as histórias de base. "O deus das moscas", assinado por Aimée de Jongh, que a ASA acaba de lançar em simultâneo com a edição original, é um dos exemplos possíveis.
O ponto de partida do romance original de William Golding é conhecido: um avião despenha-se numa ilha deserta com algumas dezenas de alunos de colégios britânicos. Sozinhos, têm de aprender a sobreviver e a criar regras para a vida em comunidade. O que até aí era dado como adquirido, como abrigo, alimento, proteção, consolo..., passa a sair-lhes da pele, literalmente.
Logo à partida, distinguem-se dois adolescentes: Ralph e Jack. O primeiro, mais dado a consensos, o segundo talvez não por acaso, solista de um coro religioso, a preferir impor a sua opinião.
Caçar animais, encontrar fruta, manter uma fogueira acesa para alertar eventuais navios ou aviões que passem, são tarefas que se tornam obrigatórias mas, aos poucos, vai-se assistir à bestialização dos miúdos, quer em aspetos que se podem considerar um recuo civilizacional, quer no aumento da violência dos mais fortes para com os mais pequenos ou os que lhes fazem frente, num crescendo de crueldade e mesmo selvajaria gratuitas que incomoda e assusta.
E que se torna mais chocante, pelo soberbo tratamento gráfico que a holandesa Aimée de Jongh imprimiu a esta versão: se inicialmente as crianças são tratadas com um traço agradável e terno e a ilha começa por parecer um paraíso, pintado com cores quentes e luxuriantes, com o avançar das páginas o retrato dos miúdos torna-se mais duro, as cores mais frias e a exposição sem rodeios da violência transmite o sentimento de desespero e terror puro que os protagonistas vão vivendo e que De Jongh, tal como Golding, consegue passar ao leitor, acentuando-os com a imagem final, que transpõe daquele local específico para o mundo real o registo da violência visceral inerente ao ser humano.