Abel Ferrara e Willem Dafoe. O realizador e o ator falam sobre a sua sétima colaboração, "Sibéria", em estreia no último dia do ano.
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Clint abandona a vida à frente de um bar nas montanhas siberianas, onde a maior parte dos clientes não fala a sua língua. Insatisfeito com a tentativa falhada de encontrar a paz, embarca numa viagem de trenó que o leva a uma gruta onde enfrenta sonhos, memórias e fantasmas. "Sibéria" junta pela sétima vez Abel Ferrara, realizador nova-iorquino de 69 anos, há algum tempo radicado em Roma, e Willem Dafoe, 65 anos, também ele com um culto de cinéfilos. Estivemos à conversa com os dois, num hotel de Berlim, poucas horas após a estreia mundial do filme, em competição na Berlinale, em fevereiro.
Este filme pode ser visto também como um exorcismo dos seus fantasmas. Conseguiu realmente livrar-se deles?
Abel Ferrara - Estou a trabalhar nisso. Não acho que se tenham ido todos embora. Os meus fantasmas estão sempre a voltar. Quanto tempo é que dura um exorcismo? Há muita gente hoje que quer fazer filmes e não consegue, e eu estou numa posição em que posso fazer o que quero. E continuo a fazer filmes porque adoro. É algo de sagrado. Quando deixar de gostar não faço mais nenhum.
A que se deve esta já tão longa e tão forte colaboração entre os dois?
AF - Ele está sempre a dizer que procura inspiração com todos os realizadores. Mas comigo ele está desde o momento da escrita. Depois filmamos. E depois montamos o filme. É um processo longo e há muita gente que vamos deixando pelo caminho. Toda a gente quer participar ao princípio, mas à 25.ª hora do 32.º dia já é diferente. Mas o Willem está lá sempre para mim.
Willem Dafoe - Há uma coisa que o Abel tem que mais nenhum tem. Quando estamos a filmar ele sabe exatamente o que gosto de fazer e o que me excita. Ele sabe que gosto de trabalhar com a câmara e que eu sei o que ele quer ver no interior do plano. Quando represento com ele, sinto-me também um realizador dentro do filme. Adoro isso porque me faz sentir mais ligado ao projeto como um todo.
O seu método de trabalho é cada vez mais colaborativo desde que se mudou para Itália.
AB - O cinema é um trabalho de grupo. Ainda me lembro da primeira conferência de Imprensa em Cannes. Tinha acabado de beber três cervejas. Esse tempo já lá vai. Agora, quando me fazem uma pergunta sobre a luz, peço ao diretor de fotografia para responder. Sem toda a gente que participou no filme eu não podia ir a lado nenhum. Se um realizador não estiver preparado para isso é melhor que se dedique à pintura. É a diferença entre um Van Gogh e um Pasolini, apesar do Pasolini também ser poeta.
Ultimamente tem tentado coisas inéditas...
AB - Disseram-me que eu já nem sequer estava no negócio dos filmes. Mas vou avançando, de filme para filme, a tentar aperfeiçoar-me. O que quero é excitar a mente do espectador. Que, mesmo sem legendas, os meus filmes cheguem a toda a gente.
Como vê a evolução do cinema do Abel Ferrara?
WD - Sinto que está a evoluir, mas é difícil explicar porque não me consigo separar desse próprio processo. Mas vejo uma progressão na forma como os diversos filmes se ligam.
O que o inspira a continuar a fazer filmes?
WD - Gosto do trabalho de representação e do empenho necessário. Estamos sempre a entrar em coisas diferentes. Sinto-me vivo quando represento. No fundo, é o que toda a gente quer da vida. Representar ensina a concentrar-nos, obriga a escutar, a termos empatia com os outros. Quando conseguimos representar bem sentimos que somos especiais.
Mas não é a mesma coisa fazer um blockbuster como "Aquaman" e filmar com Abel Ferrara...
WD - Não é a mesma coisa. Representar é representar, mas a forma como nos envolvemos no processo é completamente diferente. Temos de nos adaptar a cada projeto. Temos de ter a noção do nosso papel no contexto do projeto. Por vezes, é muito limitado, por vezes é mais influente. É bom não fazermos sempre a mesma coisa, para não ficar muito tipificado. Exercitamos músculos diferentes. Mas é verdade que há filmes mais pessoais e apaixonantes.