Artista e ativista chinês inaugura esta sexta-feira nova exposição em Serralves. Ao JN diz o que o move e porque adora viver em Portugal.
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Tem o ar de um segurança, as maneiras de um prelado, a linguagem de um revolucionário e a sua voz é dulcíssima: Ai Weiwei, 64 anos, é o excessivo e excecional artista plástico da China, país que o rejeita e de onde saiu. Esta sexta-feira inaugura nova exposição em Serralves, no Porto: "Ai Weiwei - Entrelaçar", com uma árvore titânica de ferro e raízes que são figuras humanas torcidas ou são aracnídeos que nos vieram inquietar. O que pretende de nós? Pôr-nos sempre na perspetiva do outro. E pôr-nos a pensar. " Qualquer artista, se quer estar vivo, tem que ser um ativista", confirma ao JN.
Já está a viver em Montemor-o-Novo há um ano. Porque nos escolheu?
Tomo decisões muito rápido, sou uma pessoa impulsiva. Isso traz-me problemas mas também felicidade. Gosto de reagir instintivamente. O que me atraiu foi a paisagem de Montemor. E o sol. E as pessoas amáveis. É fácil comunicar aqui, apesar de não saber a vossa língua. Gosto do relaxamento da vossa vida. Cansei-me da vida nas cidades, toda a gente tem pressa, pressa para quê? Vivi em Nova Iorque 10 anos, 20 em Beijing, cinco em Berlim, vivi em Cambridge, uma cidade-campus, nenhuma é confortável. Gosto da crueza e a natureza de Portugal é crua, adoro.
Viveu no deserto Gobi, na China, em criança, quando o seu pai foi desterrado pelo regime. Foi duro?
Sim. Foi aqui que vivi [tira o iPhone do bolso e mostra a imagem do ecrã: um buraco trevoso no chão]. Vivi neste buraco cinco anos com a minha família. A aspereza da natureza também nos dá alegria. Se lutarmos pelas coisas, temos alegrias.
O regime chinês prendeu-o e perseguiu-o. Foi formalmente acusado?
Não. Estive detido 81 dias, num sítio secreto, mas nunca fui acusado. Fizeram-me muitas acusações mas não em tribunal. A China assedia-te, quer dar-te lições, mas os ensinamentos deles não têm muito sucesso.
O regime chinês terá perdido interesse em si, agora que vive em Portugal?
Não, não, eles nunca perdem interesse em quem os critica. O que acontece é que agora presto mais atenção à Europa e ao que acontece globalmente, como a questão dos refugiados.
O que reconhece à China?
A capacidade de controlar o povo, de fazer crescer a nação, mas muitos vivem de forma terrível. Eles criaram um estado forte e autoritário e isso não é bom. Os estados autoritários destituem os cidadãos dos seus direitos, tiram-lhes liberdade, expressão, tiram-lhes a imaginação e a vida espiritualmente sã. A criatividade é muito baixa, o Estado é dono dos cidadãos. E isso pode durar séculos. Mas há de colapsar, pois não beneficiam o indivíduo, e não constroem uma humanidade forte.
Disse uma vez: "Preciso de um inimigo que faça de mim um soldado". Quer explicar-nos?
Tenho a minha vontade e crença na liberdade e na independência. Isso destaca-me. Um oficial da polícia secreta chinesa disse-me: "Sem nós, ninguém te daria atenção, nós é que fizemos de ti quem és". Dei-lhe razão. Sem um grande monstro para combater não seria o que sou hoje. Eles são poderosos mas têm medo de mim.
Porquê?
Não sei. É funcional para eles haver uma voz crítica como a minha. Não é possível um Estado forte sem vozes críticas também fortes.
O que surgiu primeiro em si: o ativista ou o artista?
Os dois são a mesma coisa. Qualquer artista, se quer estar vivo, tem que ser um ativista. A estética e a moral não podem existir sem ação. Por isso, hoje, se queres ser relevante artisticamente tens que ser interventivo, tens que responder ao mundo, tens que ser ativista.
Cria sempre em resposta à tensão?
Sim, podemos dizer isso. Como ser humano só existo se propagar os meus valores. Se não, não estou consciente, estou vivo mas não conto para nada. Tenho que responder ao que me rodeia, à minha circunstância, ao ambiente político e cultural que me envolve. É isso - ter coragem de arriscar e cometer erros - que faz de nós uma espécie encantadora. A vida é muito maior do que aquilo que conseguimos conceber.
Qual é a sua definição de arte?
Acho que a arte está além da sua própria definição. Por isso procuro sempre o que está para lá das definições que já existem. Esse é o meu trabalho. Arte é procurar o novo, novas construções, novas ideias, novas frases, é isso que tento procurar sempre: a capacidade de me maravilhar.
O que é esta árvore de ferro gigante em Serralves?
A árvore é uma prova física do nosso ambiente global e das alterações climáticas. Trouxe também troncos de árvores com mil anos, pequi vinagreiros que estão aqui vívidos. São árvores ocas, já tiveram cobras, abelhas, morcegos que viveram dentro delas e agora são templos, são igrejas modernas.
São templos de quê?
São templos daquilo que já não existe, do ambiente que o Homem está a destruir, como a floresta amazónica, que continua a desaparecer. Os moldes destas árvores vieram da Amazónia brasileira, foram reenviados para a China, foram feitos por artesãos e depois enviados para cá e remontados aqui, passando por três continentes. Esta minha árvore é igual às outras árvores, só que é muito alta e é de ferro, e, bom, não dá folhas. É uma árvore para nos pôr a pensar, podemos entrar dentro dela. Funciona como um templo moderno. A arte contemporânea é a religião moderna.
O que faz na pandemia?
Trabalho muito. Fiz três filmes documentais: um sobre Wuhan ["Coronation"], outro sobre a luta em Hong Kong, onde a China impôs a nova lei de segurança nacional ["Cockroach"] e outro sobre o maior campo de refugiados do mundo, em Cox"s Bazar, no Bangladesh ["Rohingya"]. Tenho seis exposições agora entre EUA, Lisboa e Porto. E acabei o livro de memórias, "1000 anos de alegrias e tristezas". A pandemia tem sido produtiva.
É mais fácil lidar com a pandemia aqui?
Muito fácil. Vivo no campo, comprei um pequeno pedaço de terra em Montemor e posso andar por lá livremente, sem ninguém à vista, rodeado de árvores e de sol.
Como é o seu dia típico?
Acordo cedo, 6 horas, estou sozinho até às 9, faço planos, respondo a coisas, é de manhã que estou fresco. Depois chegam os meus colegas, dou-lhes instruções, oriento trabalho aqui, no estúdio de Berlim, no estúdio de Cambridge, onde está o meu filho e a minha companheira, e oriento o estúdio na China. Dou duas entrevistas por dia, devo ser o artista que mais dá entrevistas! Depois faço o almoço para mim e para quem estiver. Gosto de cozinhar e de ir ao mercado buscar fruta, vegetais frescos, peixes, carne. Depois volto a trabalhar e faço o jantar, gosto de jantares animados. Depois trabalho mais e às 11 horas deito-me, tenho um sono profundo. Nunca tive um fim de semana livre, nunca fiz férias, não vou à igreja, não vou ao cinema, não gosto de festas com muita gente. Gosto de trabalhar. Se não tiver nada que fazer, crio um problema e resolvo-o. Sempre soube criar bons problemas [riso], sou um mestre a criar problemas.
INAUGURAÇÃO
Podíamos comer as obras de Ai Weiwei, mas Serralves não o deixou cozinhar
Nos minutos finais da entrevista, Ai Weiwei entusiasmou-se: queria cozinhar para os convidados da exposição que hoje abre em Serralves. "Faço a lista de compras e o menu, os voluntários ajudam. São 200 convidados? Não é problema e estava muito contente. Mas depois disseram: "você não pode entrar na cozinha, é a lei". E eu disse: o quê? E eles: "é a lei". Insisti: mas posso cozinhar sem entrar na cozinha, os voluntários ajudam. E eles: "também não pode, é a lei". E eu: pronto, esqueçam, não cozinho para vocês. É uma pena, eu sou o artista e, assim, podiam comer as minhas obras de arte", diz a rir. "Portugal é muito regulado, mas, e ainda bem, aqui é possível negociar, contornar, gosto disso. Mas é uma pena não me deixarem cozinhar", repetiu. O JN pediu um comentário à assessoria de Serralves, o museu não quis comentar.