André Carrilho estreia-se na literatura infantil, assinando os desenhos mas também o texto de um livro que convida a desligar a ficha. "É o ponto alto da minha carreira", diz.
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"A menina com os olhos ocupados", acabado de lançar pela Bertrand Editora, é o primeiro livro escrito e ilustrado por André Carrilho, uma estreia na literatura infantil que o vencedor do Grande Prémio do World Press Cartoon de 2015 diz representar a consagração entre a sua faceta de pai e de artista. "É o ponto alto da minha carreira", assegura ao JN aquele que é hoje uma das maiores referências internacionais do cartoon e da caricatura.
O livro de autor, escrito em verso e desenhado a aguarela, vem somar-se a uma carreira com mais de 30 prémios em 25 anos de publicações na imprensa nacional e internacional, do "New York Times" ao "Diário de Notícias". Começou aos 17 anos a desenhar para um jornal português em Macau e nunca mais parou.
Pai de duas meninas, o ilustrador nascido em Lisboa há 46 anos, convoca também os adultos quando, nesta história, tenta seduzir uma menina a ver e sentir o mundo real para lá do que lhe surge filtrado pelo monitor do telemóvel. "Esta é a menina com os olhos ocupados. Não come sopa, nem carne, nem peixe, nem fruta, nem gelados de cone. Anda sempre na rua sozinha, com a sua cabeça colada ao telefone", lê-se logo no início.
Sobre essa relação entre os ecrãs de bolso e a humanidade de calções, reconhece que também ele tenta "controlar o tempo que as filhas passam no telemóvel". Sem essa preocupação, aliás, talvez nem houvesse livro. E exclama: "Há um mundo muito maior cá fora!"
"É pena sermos loucos"
Olhando para a atualidade - Carrilho é autor das únicas imagens que existem sobre o julgamento de Rui Pinto (uma encomenda para a RTP, que foi também a realização de um sonho) -, o artista vê "um mundo cada vez mais sem sentido". E sentencia: "Estamos voluntariamente a estragar o futuro dos nossos filhos".
Pessimista, o ilustrador da edição semanal do DN lamenta a autodestruição da espécie humana. "A extinção vai acontecer. É pena ser provocada por nós. É inexplicável sermos tão loucos". E ri sem vontade de rir quando se debruça sobre a vida dos artistas em momentos de crise, económica ou pandémica (há desenhos dele nas ruas da Amadora, a ensinar as regras sanitárias que evitam a propagação do novo coronavírus).
"O papel do artista é o papel do canário na mina. Somos os primeiros a sofrer". Apesar disso, considera que este é momento mais alegre da sua vida. "É um contraditório entre a felicidade e a ansiedade do término". Não significa uma obsessão com a morte. "O medo da morte faz-nos fazer filhos e obras de arte".
O desenho não derruba
Ao desenho de personalidades políticas controversas, como Trump ou Bolsonaro, das quais diz estar cansado, André Carrilho contrapõe o prazer das "paisagens urbanas, o gosto de desenhá-las sem propósito". Ultimamente, desenhar para crianças dá-lhe também particular prazer. "A paternidade influencia", insiste.
A liberdade de expressão, incluindo a entrega à sátira ou ao exagero em trabalhos caricaturais, é relativa, diz. "A permissão do exagero é mutável, mas o exagero é a base da caricatura." Sendo hoje o cartoon uma profissão de risco, critica o que diz ser "a mentalidade de matilha nas redes sociais".
Ainda assim, admite o poder do desenho. O autor defende que os assassinatos dos cartoonistas do "Charlie Hebdo", em 2015, em Paris - nesse dia Carrilho fazia capa no DN com um desenho-poema a notar que "a liberdade de expressão tem raízes mais profundas do que qualquer assassino pode presumir cortar" -, "são a prova de que o cartoon tem poder na opinião e no espaço público". No entanto, ressalva, "um desenho não derruba um governo". E ainda bem, diz, dispensando essa responsabilidade".