Já está nas salas o comovente “Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush”. O JN falou com o realizador Andreas Dresen.
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Quando uma família turca a viver há muito em Dresden, na Alemanha, vê um dos seus filhos ser preso, acusado de terrorismo e enviado para Guantánamo, a mãe, com a ajuda de um tenaz advogado, vai até ao fim para ter de volta o seu filho e provar a sua inocência. Nem que seja preciso ir a Washington e mover um processo contra George W. Bush! “Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush” conta-nos esta inacreditável história verídica, centrando-se na figura da mãe, interpretada por Meltem Kaptan capaz de nos transmitir toda a dor da personagem, mas também o seu espírito e o inabalável sentido de humor que lhe permitiu vencer a sua batalha. O filme, que valeu à atriz o prémio de interpretação em Berlim, já está nas salas. O JN esteve a falar com o realizador, Andreas Dresen.
A história verídica decorreu ao longo de vários anos, foi difícil adaptá-lo ao cinema?
Para ser sincero o mais difícil em contar esta história foi dar ao espetador a ideia de quanto tempo passou a esta mãe para ter o filho de volta. Houve períodos de um ano em que nada se passou. Escreviam cartas a seguir a cartas mas não se passava nada. Foi por isso que decidimos contar o tempo em dias, desde que o Murat foi preso. 900 ou 1200 dias já é alguma coisa.
Quando é que decidiu contar a história através do retrato da mãe?…
Comecei a pesquisa para o filme com a história de Murat. A minha primeira ideia foi contar a história dele durante o tempo que passou em Guantánamo. Mas depois conheci a mãe. A Rabiye é uma mulher maravilhosa. Quando nos conhecemos jantámos e ouvi-a rir. Tem um riso muito simpático. É muito divertida, pode entreter uma mesa inteira. E, por outro lado, é tão poderosa. Era mais interessante seguir a história da mãe, sentir o que era uma mãe perder o filho e tentar tirá-lo da Baía de Guantánamo. É algo de quase impossível.
A personagem tem um humor contagiante…
O humor da Rabiye entrou imediatamente na história, mas perguntei-me se podíamos falar de Guantánamo de uma forma humorística. Parecia estranho. Mas podia aligeirar a história. Talvez ajudasse o espetador a entrar nas partes mais sombrias da história. O maior desafio era encontrar esse equilíbrio. Na sala de montagem, não dava para perceber se funcionava. Só no festival é que o mostrámos pela primeira vez frente a um público. Estava muito inquieto, mas depois as pessoas começaram a rir. Que alívio…
Que reações teve a família ao filme quando o viu pela primeira vez?
Foi um momento muito emocionante. Agora somos amigos, mas era muito importante que a família gostasse do filme. E para mim era muito importante entrar no espírito daquela família turca. Não queria que o filme estivesse cheio de lugares-comuns.
O filme fala também da necessidade de aceitação do outro.
Esta família vive em Dresden há cinquenta anos. Deram um lado mais fresco a uma cultura alemã mais rígida. Têm um estilo de vida diferente. É uma oportunidade para nós estarmos juntos, aproveitar o melhor de cada um. Não faz sentido criar fronteiras.
O que o governo alemão fez e se vê no filme, chocou-o?
Eu sabia, porque depois do Murat voltar à Alemanha os jornais falaram muito do caso e do que o governo alemão tinha feito, ou melhor, do que não tinha feito. Mas é outra coisa ver os verdadeiros documentos, e eu vi-os. Foi uma vergonha o que o governo alemão fez.
O que se passou, na prática?
Em setembro de 2002 os americanos disseram ao governo alemão que para eles estava bem declarar o Murat inocente e que o podiam libertar daí a seis a oito semanas. Mas o governo alemão hesitou, talvez ele fosse mesmo terrorista. Ele tinha um passaporte turco, o governo alemão não se quis responsabilizar. E começaram a levantar intrigas contra ele. Não só não o ajudaram como contribuíram para o deixar em Guantánamo.
Após levar esta história ao cinema, o que sente ainda hoje?
Foi horrível. Somos todos seres humanos, mesmo os políticos. Depois do 11 de setembro houve uma grande pressão, os políticos não sabiam muito bem o que fazer. É claro que se podem cometer erros, mas depois, quando se percebe que foi um erro, deve ter-se a coragem de assumir que foi um erro. Deviam ter pedido desculpa e até agora não o fizeram. Qual era o problema de pedir desculpa à Rabiye, à família e ao Murat? É só uma palavra, mas moralmente pode ser muito importante.
O que há de factual e o que há de ficção?
É claro que é um filme de ficção, não é um documentário. A história aconteceu assim, mas é claro que há coisas inventadas. Tentámos criar situações fortes, que talvez não tenham existido na realidade. Mas por exemplo não quisemos acrescentar elementos cómicos só porque sim, tudo veio da personalidade da Rabiye.
Quanto tempo é que demorou a encontrar a sua atriz?
Encontrar a atriz certa era um dos pontos mais importantes do projeto. Precisávamos de uma atriz turca que falasse alemão, que tivesse a força e o humor e que pudesse carregar o filme todo sobre ela. Começámos a procurar em todos os países germanófonos e na Turquia. Cheguei a ter várias atrizes na lista, mas a Meltem foi das primeiras.
Pouco se sabia antes sobre ela…
É uma comediante, nunca tinha feito um filme antes. Faz sobretudo comédia de stand-up. Desde o início que verifiquei que ela tinha um grande sentido do timing. Faz parte do trabalho dela. É muito boa nos momentos cómicos, mas mesmo nos momentos mais sérios tenho a sensação que através dos olhos dela posso olhar diretamente para a sua alma. Por vezes tem o olhar de uma criança. É por isso que simpatizamos tanto com ela.
É fácil ou difícil fazer um filme assim na Alemanha, criticando de forma tão clara o governo?
Ninguém gosta de ser criticado, em especial os políticos. Mas não tivemos nenhum problema com os financiamentos por causa do tópico político do filme. Foi mais difícil encontrar o equilíbrio entre o gesto político e a parte humana da história. Para mim não fazia sentido apontar o dedo a este ou aquele político. Qualquer pessoa pode fazer a sua pesquisa e descobrir os factos. Para mim, é uma história universal. A de uma mulher simples, que luta pelos seus direitos. Tem sucesso, o que é fantástico.
É um exemplo, para muitas outras situações no mundo em que vivemos?
Mostra a toda a gente que é sempre possível fazer qualquer coisa. Quando vemos televisão e assistimos a coisas horríveis, pensamos como somos pequeninos e que não somos capazes de fazer nada para o impedir. Mas é errado, nós podemos. É possível mudar o mundo, porque é feito pelo Homem. Podemos mudar as coisas, temos é de nos pôr de pé. A história desta mulher turca mostra que é possível lutar pelos nossos direitos. É a parte otimista desta história.
O facto de ter nascido na antiga RDA dá-lhe uma visão diferente da política alemã?
Toda a gente transporta a sua própria biografia. É curioso, porque logo nas primeiras vezes que fui a casa da família da Rabiye senti uma ligação muito forte entre nós. Quando falei do meu passado na Alemanha de Leste percebemos que afinal éramos todos emigrantes. De alguma forma as nossas situações são semelhantes. Os alemães de leste só estão parcialmente integrados no sistema alemão. Após mais de trinta anos ainda temos diferenças. É estranho.
O filme inscreve-se numa linha de obras que inclui, por exemplo, “Erin Brockovich”.
É claro que vi esse e outros filmes do género. Esse em particular porque tem uma personagem central feminina. E a estrutura da história também tem semelhanças, há alguém que se envolve em questões sociais e políticas, mas de forma um pouco ingénua. E começa a lutar. A Rabiye lutou durante cinco anos. Nem sempre foram momentos maus, também viveu experiências interessantes. O filme também é uma história sobre a amizade com o seu advogado. Uma amizade que ainda hoje continua.