Cineasta fala da animação "À procura de Anne Frank", já nas salas de cinema.
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Nova abordagem da história da jovem que escreveu um diário antes de ser enviada para Auschwitz, onde morreu, "À procura de Anne Frank" tem como personagem central a sua amiga imaginária, Kitty, que ganha vida no mundo de hoje, marcado por outra tragédia humanitária, a crise dos refugiados. Ao mesmo tempo que chega às livrarias a novela gráfica que Ari Folman escreveu e Lena Guberman desenhou, o filme aterra nas salas de cinema portuguesas. Ocasião para recordar a conversa que tivemos em Cannes com o realizador israelita, cuja mãe, hoje com 99 anos, é sobrevivente de Auschwitz. Folman confessa-nos um episódio que o liga ainda mais a esta história.
No final do filme percebemos que o Ari Folman tem uma ligação muito estreita com a história de Anne Frank.
Após alguma investigação descobri que os meus pais chegaram a Auschwitz na mesma semana que a família de Anne Frank. Descobri que a Anne Frank estava no último comboio de Westerbork para Auschwitz. Não se sabe exatamente quanto tempo é que demorou a viagem, terá sido entre cinco a sete dias.
Este filme tem uma audiência muito específica em mente.
Foi a primeira vez que fiz um filme a pensar nos espectadores. Nunca o tinha feito. Mas aqui tinha um objetivo e comuniquei-o a toda a equipa. Se me acontecesse o mesmo que no filme anterior, "O congresso", em que além de alguns festivais ninguém foi ver o filme, estávamos tramados. Queria que as crianças de todo o mundo vissem o filme. Que fosse mostrado nas escolas, que cumprisse um objetivo educacional.
O projeto começou a ser desenvolvido há oito anos.
A minha filha tem 14 anos e diz que não se lembra da vida dela sem a Anne Frank. Tinha seis anos quando comecei a trabalhar no projeto, cresceu com ela, sempre foi uma história muito presente em minha casa. Por isso as minhas filhas foram como que conselheiras na escrita do argumento. Uma delas até desenvolveu comigo a ideia do dirigível.
Mostrou o filme à sua mãe?
Mostrei e foi muito emocional. É uma mãe judia polaca. Tinha-me dito que ia viver até ver o filme. Tive de descobrir uma ideia para a manter viva. Disse-lhe que ia encenar uma ópera em 2024 e prometeu-me viver até lá.
De onde lhe veio a ideia de colocar Kitty como personagem central?
Estava à procura de uma solução. Sabia o que não queria fazer. Não queria adaptar o diário. Não estava a descobrir como é que poderia contar a história mas queria encontrar uma solução no texto. E um dia li outra vez o início do diário, quando ela cria a personagem de Kitty, com a descrição exata dos olhos, da forma do rosto, do sorriso, do cabelo, do corpo, da personalidade. Depois de ler várias vezes a personagem já estava na minha mente. Percebi que podia ser ela a conduzir o filme.
As crianças ainda podem ser educadas, enquanto os adultos já têm muitas ideias feitas. Foi por isso que fez o filme em animação, depois de uma experiência em imagem real?
Absolutamente. Quando recebi a proposta não queria fazer o filme. Anne Frank, quando escreveu o diário, tinha 13 anos, era mais nova que a minha filha mais nova. Os miúdos hoje já não leem. Pelo menos os miúdos que conheço; nenhum leu o diário. Mas por outro lado são tão desenvolvidos. Não leem Stefan Zweig mas são pessoas diferentes. Consomem conteúdos, gostam de estudar aquilo por que estão obcecados.
Quando é que decidiu ligar a história de Anne Frank à dos refugiados de hoje?
No início não estava no guião. Tinha qualquer coisa completamente diferente, do domínio do fantástico. Muito influenciado por pesquisas que fiz a meio dos anos 1990. Durante o cerco de Sarajevo, uma rapariga de 14 anos declarou-se como a Anne Frank da Bósnia. Eram os primeiros tempos da internet e todos os dias escrevia qualquer coisa. Um dia, um helicóptero aterrou na aldeia dela, meteram-na num avião para Paris, entrevistaram-na, ela disse que ia morrer, como a outra Anne Frank, e voltaram a levá-la para a Bósnia.
Como é que a história acabava?
Faziam voar crianças da Nigéria, do Chade e de outros países e havia uma competição entre elas. Achei que era perfeito, algo como "Anne Frank - A nova geração", muito influenciado pelos estúpidos reality shows. Era muito radical. E à beira do mau gosto. Mas era muito cinematográfico, era por isso que gostava da ideia.
Porque resolveu então mudar o final?
Podia não resistir ao tempo, ao fim de cinco anos podia estar datado. Nunca estive completamente feliz com a solução. E então a crise da emigração começou e decidi mudar o guião. Com a ideia da transferência de uma geração para outra. A Anne Frank transfere o diário para a Kitty, a Kitty ganha vida e pega no diário, transfere-o para Awa, a terceira geração, uma refugiada da África central.
É curiosa a forma como mostra os nazis.
Não os conseguia imaginar. Demorámos meses a desenhá-los. Estava muito frustrado. Queria mostrá-los como seres humanos, depois perguntava-me por que razão os mostraria como humanos. Decidi então telefonar à minha mãe e perguntar-lhe como é que, no campo de concentração, ainda adolescente, ela via os nazis. E ela só me disse isto: como deuses. Muito para além do humano. Eram todos perfeitos.
Imagino que ela mudou muito de opinião.
Quando a guerra acabou, esteve a acompanhar o julgamento de Nuremberga. E ficou chocada. Por exemplo, Irma Grese, assistente de Josef Mengele, que torturou a minha mãe, a pessoa mais nova a ser julgada por crimes contra a humanidade, era considerada a mais bela, como uma loura fatal. Agora parecia-lhe uma mulher pequena e muito feia. Parecia outra pessoa. Foi isso que me inspirou, como ela os via. Com esse vazio no olhar, como uma máscara.
Como é que lidou com as novas ferramentas de animação? Deve ter sido muito diferente de "Valsa com Bashir", que rodou há mais de dez anos.
Foi um inferno fazer este filme. "Valsa com Bashir" eram seis pessoas numa casa, a divertir-se, a fazer ioga. Fazer este filme foi muito duro. Começámos com uma coprodução europeia com cinco estúdios, em Israel, Luxemburgo, Bélgica, Países Baixos e França, mas com a pandemia tudo colapsou. Andámos à procura de animadores um pouco por todo o mundo. No último ano e meio estivemos em Martinica, Austrália, Nova Zelândia, Toronto, nas Filipinas e na China. Foi insano.
Mas "Valsa com Bashir" foi um sucesso, ganhou um Globo de Ouro, esteve nomeado para os Oscars.
Vou contar-lhe uma história. Ganhei o Globo de Ouro e telefonei ao meu banco para saber se a minha situação financeira estava melhor. Disseram-me que não. Somos tão bons quanto o nosso último filme. "Valsa com Bashir" correu muito bem, todas as portas se abriram para mim. Fiz "O congresso" em imagem real, os críticos adoraram mas ninguém foi ver o filme. Tive de começar outra vez do zero.
O seu filme é otimista. Pessoalmente, até que ponto está otimista em que o mundo possa melhorar, por exemplo na relação entre Israel e a Palestina?
Hoje mesmo, o ministro da Cultura veio ver o meu filme aqui em Cannes. Dormiu num pequeno hotel. O governo mudou. Um tipo mesmo impecável. Humilde, inteligente, doou um rim a uma pessoa que não conhecia. O que está a acontecer agora em Israel é prometedor. Um governo com pessoas de direita, pessoas mesmo de esquerda, em quem votei, todos sentados no mesmo governo, e funciona. Não acho que consigam encontrar juntos uma solução para a questão da Palestina, mas sente-se otimismo.
Já está a trabalhar num novo projeto?
Tenho três ou quatro em cima da mesa. Após três filmes de animação talvez seja mesmo um realizador de animação. Mas nunca mais vou fazer animação para adultos. Já não faz sentido para mim. Não posso contratar 200 animadores durante anos para um filme que depois ninguém vai ver. "Valsa com Bashir" custou 1 milhão e foi feito por seis pessoas; "À procura de Anne Frank" foi um milagre ter sido feito, mas não vai acontecer outra vez.
Qual é o seu filme de animação preferido?
O "princesa Mononoke". E dos últimos dez anos, "Ilha dos cães".
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