O Primavera Sound, pelo caráter e pelo contexto em que acontece, não é como os outros festivais.
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Não é seguramente como o Alive, de Oeiras, e o Super Rock (que este ano é no Meo Arena e no Parque das Nações, em Lisboa), que também são urbanos mas têm recintos agrestes e são apanhados pela congestão; não é como Coura, onde se vai e se fica durante cinco dias metido na paisagem pastorícia que captura; não é poeirento como o Sudoeste, na Zambujeira, cada vez mais exclusivamente "teen"; não é, também, como o Marés Vivas, de Gaia, citadino e à beira-rio, mas com um recinto estreito que aflige ligeiramente na hora de entrar, sair ou circular; não é, por fim, exclusivo de géneros como o Músicas do Mundo ou o Neo-Pop, encontrando-se apenas um festival em Portugal que lhe é aparentado na temática e no gosto simultâneo de convocar a história e apostar no risco de quem busca sempre o que é novo, como é o caso do Milhões de Festa, de Barcelos. Mas o Milhões, apesar do muito charme e dos seus solarengos e surrealistas concertos na piscina, é pequenino (chama anualmente seis mil pessoas) e por isso incomparável.
Com uma previsão de 27 mil pessoas por dia este ano a circular no Parque da Cidade do Porto - é o caudal de público mais ambicioso de sempre do certame, que executa este ano a quarta edição -, o Primavera Sound, patrocinado pela Nos, é, para a imensa soma das minorias que se alimentam da música "indie", o melhor festival do país - e mesmo que o cartaz não o acompanhasse nessa ambição, um pormenor se imporia sobre o resto: o recinto, que é o magnífico jardim natural do Parque da Cidade, com cheiro de maresia e divisões naturais de arvoredo e encostas relvadas, não tem paralelo de qualidade com nenhum outro recinto cá de dentro - e até lá de fora, porque, por exemplo, o Primavera espanhol, que tem 15 anos e é irmão maior do portuense, tem um recinto áspero e ventoso e obriga a andar quilómetros de palco para palco pelo duro asfalto afora.
É "indie" mas também para famílias
Festival congrega vários géneros em si
Com uma filosofia muito bem definida entre a necessidade de rever permanentemente a história (o futuro, ainda que nem sempre o saibamos, muitas vezes já aconteceu lá atrás) e de, simultaneamente, apresentar hoje as bandas que iremos ouvir amanhã, o Primavera Sound só pode ser definido, dada a imensidão de géneros que comporta, entre todas as variações do pop/rock, as lateralidades eletrónicas e a periferia experimental, como "indie". E é também familiar - é, aliás, muito "family friendly", com excelente capacidade de acolher crianças e comportar, sem se desvirtuar, música para contentes casais (ver Damien Rice, Belle and Sebastian, Anthony & The Johnsons - Anthony, confirma-se, vai tocar com orquestra de 40 elementos).
De entre os 27 mil esperados a partir de hoje (25 mil em 2014), há um sublinhado já a fazer: é contínuo e crescente desde a primeira edição o número de espetadores estrangeiros que estão a adotar o festival do Porto. Este ano, representam já 1/3 do público total, com espanhóis e ingleses a somarem mais de metade dos forasteiros.
A taquicardia na hora de escolher
Todos os dias há concertos sobrepostos
Três dias, 49 bandas, quatro palcos, 34 horas úteis ocupadas com música e há já uma preocupação a assomar o sobrolho: não é possível ver tudo, há concertos sobrepostos, vamos ser obrigados a escolher. E hoje, entre os nove espetáculos do dia, já há um concerto a que teremos que faltar: às 20 horas ou vemos Mac DeMarco ou estamos na Patti Smith. Para quem já viu o "crooner" da pop e da dessintonia em Coura no ano passado será fácil: é ir cedo para a tenda negra da Pitchfork e guardar lugar para o missal negro de recitação da poesia de Patti, que hoje toca em formato acústico (só amanhã é que iremos ouvir a venialidade de "Horses", disco que a nova-iorquina expeliu há 40 anos e vem agora, vestida e armada para a provocação e o comício, tocar numa versão integral). Amanhã e sábado, o cenário é pior. Dois exemplos: Belle and Sebastian, Spiritualized ou Pallbearer (todos à roda das 23 horas)? Run The Jewels, Jungle ou Ariel Pink (todos à 1h40)? Pior: partindo do princípio de que a maioria não aguenta 12 horas consecutivas de música, como sucede amanhã e depois, aposta-se em entrar mais tarde e perder os concertos inaugurais de Yasmine Hamdam ou Manel Cruz ou ir logo que o recinto abra e correr o risco de não aguentar e perder os sensualíssimos Movement que atuam às 3 da manhã? Definitivamente: este é o festival da taquicardia.
Entre a arqueologia e o futuro
Há um bom equilíbrio entre todos
Com uma bela variedade de bandas arriscadas e capazes de pasmar (ler as sete escolhas, ao lado), o Primavera 2015 sobressai sobretudo pela qualidade da arqueologia e da nostalgia que nos traz: além de Patti, há The Replacements, Giant Sand, Interpol, Ride (têm 30 anos e fazem, ainda, esplêndido shoegaze), Babes in Toyland, Einsturzende Neubauten, Underworld (trazem uma coisa com 20 anos mas que, vamos confirmar, é radiosamente futurista: "Dubnobasswithmyheadman!"), Spiritualized ou até o muito cá de casa Thurston Moore.
Mas é sobretudo no novo que devemos apostar: FKA Twigs é fresquíssima e libidinosa (chama-se Tahliah e, já agora, namora mesmo com Robert Pattinson? E o vampiro também vem?), The KVB (fazem coldwave e novo shoegaze), Ought (art punk de Montreal), Mikal Cronin, Ex-Hex e Caribou (a banda de Daniel Victor Snaith já vem desde 2000, mas "Our love" é novíssimo e que belo disco é "Our love" e que bem vai saber ouvi-lo ali e poder dançar).