Na sua estreia literária em Portugal, o francês Arthur Larrue descreve no romance biográfico "A diagonal Alekhine" a inacreditável vida de um campeão do mundo de xadrez que se entregava com igual mestria à espionagem e ao ofício de matar.
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A recheada vida de Alexandre Alekhine (1892-1946) - campeão mundial de xadrez assassinado no Estoril uns meses depois do fim da II Guerra Mundial - inspirou o escritor francês Arthur Larrue a escrever "A diagonal Alekhine".
A viver atualmente em Portugal, Larrue explica o fascínio pela cultura russa, muito presente nos seus livros, e recorda os anos em que viveu em São Petersburgo.
Por que defende que "um romance é como um partida de xadrez"?
O xadrez é uma arte. Com figuras inventadas, com movimentos e probabilidades, nós (o escritor ou o leitor ou o jogador de xadrez) criamos um mundo alternativo e estranho, absolutamente artificial, mas onde a vida ressoa e se reflete, onde a vida se expressa e cresce. Sinto-me mais vivo a ler ou a jogar xadrez, mesmo estando perto da vida, durante algum tipo de pausa ou algo parecido.
"A Diagonal Alekhine" só poderia ter sido escrito por um jogador de xadrez?
Acho que não. O meu romance não é um livro de xadrez. Talvez nem seja um livro sobre xadrez, mas sobre uma geração excecional de jogadores de xadrez, ou seja, sobre os homens notáveis que eles foram e como as suas vidas se desenrolaram no tabuleiro de xadrez: Rubinstein, Spielmann, Tartakover, etc. Mas acho mesmo assim que devo ter experimentado a vertigem do jogo de xadrez. Para fazer isso, não é preciso conhecer as regras ou mesmo ser um jogador experiente. O jogo - o seu potencial, a sua beleza intelectual e plástica, a sua história milenar - é, na sua essência, vertigem. Esta vertigem está ao alcance de todos.
Este é um romance com traços históricos que podemos ler como um autêntico 'thriller'?
Claro! Este é um homem que enfrenta a morte. Trata-se de um homem que se tornou um mestre na arte de matar que se vê confrontado com a iminência da sua própria morte. É sobre um homem sozinho e atirado para uma maquinação terrível.
A morte de Alekhine sempre foi vista como um mistério. Com o seu livro, crê que esse enigma ficou um pouco mais diluído?
É um facto que o meu romance acaba por inclinar-se para uma explicação.
Apesar de já não se encontrar na sua fase áurea na altura, Alekhine ainda era o campeão do mundo em título quando foi encontrado morto. A mitologia em redor do seu nome deve-se fundamentalmente a isto, em seu entender?
Não, a vida de Alekhine é muito mais extraordinária do que sua morte. Estamos a falar de um campeão mundial de xadrez que viveu duas guerras mundiais, uma revolução, uma guerra civil e que viajou duas vezes à volta do mundo, numa época em que a aviação civil ainda era muito rara. Estamos a falar de um jogador que deu o seu nome a uma defesa estranha, quase antinatural. Não acredito na morte de Alekhine. Graças à intensidade de sua vida, Alekhine tornou a sua morte implausível.
Na reta final da vida, Alekhine era um homem acossado por todo o lado. A sua morte era inevitável?
Acredito que Alekhine sabia que era imortal. Acho que, até ao fim, ele achava que a morte não tinha hipótese contra ele. Acrescento que não é absolutamente certo que a morte ganhou o jogo. Alekhine está morto? Dediquei um romance e seis anos da minha vida a ele. Você mesmo irá, durante o seu artigo, várias vezes invocar o nome dele. Um meteorito chamado Alekhine ainda está a gravitar, neste preciso momento, em algum lugar na vastidão do universo. Acrescente a isso todas as defesas Alekhine que ainda estão a ser jogadas, enquanto falamos, em tabuleiros de xadrez por todo o mundo. Conheci muitos mestres que juram por essa defesa, ou seja, que jogam novamente como Alekhine jogou.
Ficou com uma imagem substancialmente diferente de Alekhine depois de terminar o livro?
Não, antes de escrever a primeira palavra de "A diagonal Alekhine" eu morava com Alekhine há vários anos. Frequentávamos um ao outro regularmente e conhecíamo-nos bem. Considero a minha profissão de escritor uma espécie de espiritismo. Palavras são coisas e nomes são seres. A literatura é uma mística.
Como foi a pesquisa para o livro?
Leio muito. Sonhei com fontes, ou seja, quanto mais científico e sério o trabalho, mais a minha imaginação ganhava vida. Descobri um mundo - o do xadrez - imenso, talvez tão imenso quanto a literatura. Este mundo teve os seus poetas, os seus movimentos, as suas revoluções, etc. A história do xadrez acompanha as grandes revoluções da mente. Cada época tem sua própria maneira de jogar.
Todos os seus três romances estão de um ou outro modo relacionados com a Rússia ou Ucrânia. O que o atrai em particular nos povos e na cultura eslava?
O seu excesso e a sua irracionalidade.
O Mundo continua sem entender a Rússia?
Pelo contrário, acredito que o mundo está finalmente a entendê-la...
Em 2013, após publicar um dos seus romances, foi forçado a deixar a Universidade de São Petersburgo, onde lecionou durante quatro anos. À distância de quase uma década, como recorda esse episódio?
Tive que sair. Eu provavelmente teria ficado. São Petersburgo é a cidade onde comecei a escrever e, de todas as vezes que escrevo um novo texto, ainda hoje, retorno (em espírito) a São Petersburgo. É uma zona mental para mim. Este é o lugar onde deixei minha alma.
Na sua escrita parece ter um gosto particular em ficcionar figuras históricas, seja Alexandre Alekhine, Daniil Kharms ou Grigory Sokolov. Mesmo as vidas mais públicas podem esconder muitos segredos?
Esses nomes são amigos íntimos, seres próximos. Como tal, deixo-lhes muitos segredos e modéstia. Se estão a esconder algo de mim, é porque têm boas razões para isso. Tenho que ganhar a confiança deles primeiro.
Que atributos devem ter as figuras históricas para captar a sua atenção e dedicar-lhes um livro?
Não há lei geral. Para Alekhine, era a combinação do melhor e do pior, da genialidade e do racismo, da excelência e da covardia. O meu romance é assombrado pela ambiguidade de Alexandre Alekhine.
Devido à recente invasão da Ucrânia, a cultura e a arte russas, e nem sequer apenas a contemporânea, passaram a estar na mira dos defensores da cultura de cancelamento. O que perdemos com essa prática?
Ninguém deveria ter que escolher entre Vladimir Putin e Lev Tolstói. A emoção em que a guerra nos coloca, no entanto, desvia alguns da cultura russa. Não acho possível imaginar que seja permanente. Acrescento que esta cultura "russa" - quando não é ucraniana como Borscht, Gogol, Bulgakov, Babel, etc. - é também europeia e muito ligada, em particular, à cultura francesa. Pushkin, na sua juventude, foi apelidado de "o francês" e é o pai da literatura russa! Odeio fronteiras. Acho-as erradas. Portugal é uma costa e escolheu para o seu prato obsessivo um peixe que é pescado ao largo da costa da Noruega. É preciso ser um tolo para acreditar em fronteiras. Putin é um tolo. Não entende a história ou o que torna uma nação grande. Ele está a destruir a Rússia.
Ser russófilo, no sentido cultural, literário e artístico, é perigoso nos dias que correm?
Não, por que seria? Devo pensar assim?
O Mundo ficou em choque com a decisão de Vladimir Putin de invadir a Ucrânia. Para quem viveu na Rússia durante vários anos, a surpresa não será assim tanta?
Testemunhei a guerra interna travada por este regime contra o seu próprio povo. Escrevi três livros para testemunhar esta guerra. Um amigo, que se tornou personagem de um romance (Leonid, em "Going to War") foi assassinado. Testemunhei a derrota do povo russo contra o poder russo. Traduzi Gogol (escritor ucraniano de língua russa) para encontrar, entre as suas maravilhosas linhas, a crítica à tirania que os havia inspirado. Não, esta guerra não é uma surpresa. É a continuidade de uma guerra que começou com a chegada ao poder de Vladimir Putin. Uma guerra que dura desde que Ivan IV, autodenominado O Terrível, afirmou, como Vladimir Putin hoje, que ele era a "paz na guerra". Ou seja, uma vez submetido e destruído, um povo encontra finalmente a paz.
Vladimir Putin seria uma personagem desafiadora para protagonizar um romance?
Preciso admirar os meus personagens. Preciso amá-los. Além disso, Vladimir Putin parece-se em demasia com um vilão de um mau filme de James Bond: o seu corpo cheio de botox, as suas mesas de vinte metros, o seu aerópago de artistas covardes, o seu exército de criminosos, a sua amante ginasta etc. Eu sou um bom escritor. Gosto de literatura. Os meus personagens têm muito mais substância. Não escrevo série Z.
Vive em Portugal há já algum tempo. Já teve tempo de conhecer melhor também a cultura e a literatura portuguesas?
A alma portuguesa é a alma mais interior e orgulhosa que já encontrei. Talvez não esperasse encontrar tanto talento. Portugal está cheio de talento. Entre as minhas admirações portuguesas, conto um poeta pornográfico do século XVII chamado Boca do Inferno (Gregorio de Matos e Guerra), a quem dediquei um conto; uma artista plástica chamada Fernanda Fragateiro, com quem fiz uma escultura em homenagem a Leonid (personagem de "Going to War"); um arquiteto chamado Manuel Aires Mateus, de cujos edifícios gosto e com quem a Fernanda Fragateiro prometeu convidar-me para jantar; o designer gráfico das edições Quetzal, Rui Rodrigues, que desenhou a capa mais bonita que existe para o meu romance; um artista chamado Xavier Almeida, com quem publiquei dois livros e costumo multiplicar colaborações à medida que as nossas respetivas linguagens correspondem...
A decisão de viver em Lisboa esteve de algum modo relacionada com a ação deste romance, parte do qual situado em Portugal?
Mudei-me para Lisboa porque sonhava com uma biblioteca que falasse quatro línguas. A língua portuguesa era, na verdade, a quinta língua: a minha esposa, que é francesa, falando alemão. Os nossos livros são em russo, francês, português, inglês e alemão. Partilhamos a mesma biblioteca. Eu sou um amante e um europeu. Um dia gostaria de aprender a falar e ler em italiano. Outro dia, gostaria de aprender a falar espanhol novamente. Gostaria, mesmo que apenas na escala de um hino de Hölderlin, de ler alemão.
A Lisboa misteriosa da década de 1940 deu lugar hoje a uma cidade mais cosmopolita e aberta. Enquanto fã desse período, lamenta esse desaparecimento?
Não, entre o Portugal "orgulhosamente só" e colonial, povoado por bufos e agentes da PIDE, e o atual, prefiro muito mais o país aberto e livre que é hoje. Toda a Europa está de olho em Portugal. A minha rua em Lisboa fala mais línguas do que a minha biblioteca.
Publicou no ano passado "Zap", uma novela gráfica que se desenrola nas florestas russas durante a II Guerra Mundial, onde um batalhão luta contra a invasão nazi. Menos de um ano depois, imaginaria que o livro pudesse ganhar uma atualidade tal?
O meu trabalho, além de ser um médium reanimador fantasma, também é antecipar o futuro. Faço o melhor que posso. Os escritores ainda têm um pouco de utilidade pública, inclusive a de serem Cassandras.
Esse livro, "Zap", é uma obra múltipla. O seu interesse pela escrita vai muito além dos romances?
Os meus livros estão traduzidos numa dúzia de idiomas e, por vezes, também são desenhados. De cada vez que leio as minhas páginas numa língua estrangeira ou vejo os meus personagens encarnados em imagens é uma emoção especial - talvez a maior honra que, na minha opinião, se pode conceder a um escritor. A literatura, escrita ou lida, é sempre muito solitária, quase demasiado do lado da morte. Eu amo o outro lugar, a vida, as pessoas. Para o "Zap", gosto primeiro do talento e da companhia de Xavier Almeida. Estaremos juntos no Porto, no dia 18 de junho, na livraria Termita. Vamos expor uma interpretação gráfica de um trecho de "A diagonal Alekhine" (a livraria tem um espaço expositivo) e autografar livros. Por favor, diga aos leitores do seu jornal que venham ver-nos!