Numa entrevista à margem da sua nova incursão pelos palcos portugueses, a artista brasileira Bia Ferreira culpou a atual onda conservadora que varre o Mundo pelo clima de ódio dominante. "O lugar deles vai ser o lixo da História", afirmou ao JN.
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Há pouco mais de um mês, foi criticada por muitos, assim que se soube que o seu nome era um dos que integrava o cartaz da Festa do Avante! Em forma de balanço, Bia Ferreira afirma, em entrevista ao JN, que "houve uma certa maldade na distorção do que se passou", culpando a desinformação atual e a falta de curiosidade das pessoas pelo sucedido.
Fortemente crítica do impacto do conservadorismo no aumento do ódio e intolerância , a autora de "Igreja Lesbiteriana: um chamado", conhecida também pelo seu ativismo na defesa das minorias. adianta que as eleições do próximo mês vão ser as mais importantes da História recente do Brasil, por oporem "o ódio contra o afeto":
Neste sábado à noite, a artista sobe ao palco do B. Leza, em Lisboa, depois de nos últimos dias ter atuado no Porto e no Seixal.
Como está a viver o regresso aos palcos portugueses, depois da polémica em que se viu envolvida devido à participação na Festa do Avante?
Estou feliz por voltar. É importante demonstrar às pessoas que a arte vai vencer, pois o poder da arte vai ser sempre superior ao poder do ódio. Acima de tudo, estou a ser bem recebida. Não nos podemos esquecer que estamos a viver um momento de desinformação, pese embora as fake news já sejam muito antigas no Brasil As pessoas têm pouca vontade de buscar por si mesmas a informação. Sobre a polémica em que me vi envolvida, acho que faltou curiosidade de saber o que é verdade, mas também houve uma certa maldade na distorção do que se passou. Nada acontece por acaso e o que se passou permitiu que mais pessoas tivessem acesso ao meu trabalho.
É muito crítica quanto ao estado do Mundo. Como pode a arte ser um agente da mudança?
Costumo usar um exemplo bem simples da revolução francesa. Cem anos anos antes de acontecer, os poetas já falavam sobre a liberdade, igualdade e a fraternidade. A arte já estava a posicionar-se e ninguém se apercebeu. Uma das funções da arte é tomar um lado quando está em causa a liberdade de pensamento e até de existência. Uma arte que não se posiciona é uma arte que contribui para a política de pão e circo que tenta abafar a liberdade das pessoas. A arte tem que ser mais firme. Se não narrar a atual conjuntura, corre o risco de ser usada como ferramenta para manipulação das mentes. A arte serve para contrapor a narrativa dominante, ao mesmo tempo que toca o coração das pessoas.
É por isso que faz questão que as suas letras sejam tão contundentes e até agressivas?
Agressiva foi a colonização, agressivo é o racismo. Falar abertamente sobre esses assuntos é libertador. Se incomoda é porque vai gerar transformação. O que não gera incómodo deixa-nos inertes. Quero trazer informações que sejam tão lúcidas que se torne difícil negar a sua existência.
Como é que uma artista de causas vê estes tempos de extremos que vivemos?
Vivemos tempos cruéis. Para quem faz arte, mas também para quem tenta propor uma forma igualitária de vida. O que temos vindo a assistir é a legalização do ódio. As pessoas perderam a vergonha de serem racistas ou de terem comportamentos machistas. Essa polarização gera a naturalização da opressão do outro. A arte tem perdido um espaço importante para a sua liberdade de ser.
No Brasil ou em todo o Mundo?
No Mundo. Assim como no Brasil enfrentamos o bolsonarismo e nos EUA o trumpismo, na Europa também há vários regimes com pendor populista. Há um avanço mundial desse tipo de narrativa. Por isso, há a necessidade de os cidadãos que pensam ao contrário dessa narrativa se disponham a mudar o outro. Esse avanço do conservadorismo tem tirado espaço ao diálogo. O facto de não falarmos aumenta a possibilidade de desinformação. Só criamos pensamento crítico a partir do confronto com outras ideias. Não tento convencer as pessoas de que estou certa. Tento apenas propor a possibilidade de crítica, de um pensamento divergente. Peço que nos coloquemos no lugar de agente de transformação. O Mundo está a passar por uma onda conservadora, mas acredito que o lugar que está reservado para essas pessoas é o lixo da História. Lutamos do lado certo: do amor, do respeito e do acesso a informação democrática.
Diz no disco que a democracia é a ditadura disfarçada. Qual é a alternativa que propõe?
Não há democracia se não pensarmos na inclusão racional, na reforma agrária ou em políticas públicas de inclusão dos migrantes. Quando se diz que todos somos democratas e ainda se morre pela cor da pele ou por amarem alguém diferente, essa democracia é uma falácia, é feita para saciar a necessidade de poder das pessoas, mas não para emancipar o poder dos cidadãos. Para pensar em democracia temos que pensar em políticas de igualdade e de acesso. O exercício da democracia tem sido deturpado.
Isso não se deve também à inércia dos cidadãos?
Sim, concordo. Faço a minha arte para causar rajadas de cultura, para fazer o coração das pessoas bater de novo e pararem de ter medo de se posicionar. Quando a arte vem ao nosso encontro, não deixa ninguém parado. Estamos a viver um tempo de mudança.
Já disse em entrevistas que o Brasil está em guerra há muitos anos. Quem são os opressores e as vítimas?
Os maiores opressores são os que praticam o agronegócio que persegue populações indígenas, os grandes empresários, o garimpo, a bancada parlamentar que prega a legalização das armas. O grande inimigo do povo é um presidente da República que consegue comprar mais de 51 imóveis por 26 milhões em dinheiro vivo, sem declarar essas verbas. As vítimas são as pessoas que vivem com menos condições financeiras, pessoas pobres do campo que perdem a possibilidade da agricultura familiar. Quem perde também é o planeta Terra. Enquanto esses inimigos do planeta continuarem a ter acesso ao poder, quem perde é o mundo. Estamos a destruir o que temos. As maiores vítimas somos todos nós, que cada vez mais nos vamos confrontar com uma escassez de recursos.
Muitas dessas vítimas que refere foram aquelas que, com o seu seu voto, ajudaram a eleger quem está agora no poder.
No Brasil não existe a tradição do cochilo ou sesta. Isso é privilégio do colonizador. Por isso, trabalha-se 12 ou 15 horas por dia para trazer comida para a mesa. Há 40 milhões de pessoas que passam fome. Quando isso acontece, não há tempo para construir um pensamento crítico. As pessoas só querem sobreviver. E nesse sentido o não acesso à informação faz com que a desinformação prevaleça. Foi assim que este Governo chegou ao poder. E é assim que ele vai sair agora. As pessoas pobres que dantes corriam para trabalhar, agora correm para comer. Foi preciso que elas chegassem ao fim do poço para gerar esse incómodo. As pessoas que elegeram o Governo e não souberam fazer uso do seu voto, foram desincentivadas a pensar. Reproduzem o efeito de manada. Esse desincentivo em cultura e educação tem que acabar. Este Governo vai acabar como o pior da História. O país vai precisar de 20 anos para recuperar do atraso, tantas as regressões que houve.
Vão ser as eleições mais importantes da História do Brasil?
Sim, porque não é uma eleição da Direita contra a Esquerda. É uma eleição do ódio contra o afeto. O discurso de ódio é mortal. É avassalador. Estamos com medo. Das pessoas que têm acesso às armas e podem matar, como ainda aconteceu há dias com um homem que alvejou um companheiro dentro da igreja por discordância política. É essa política de ódio que temos de abolir, porque não se dirige a divergências sobre Esquerda ou Direita. Tem a ver com o ódio à democracia.
Ser pobre e negro no Brasil ainda é uma fatalidade?
É. Num país onde a cada 23 minutos assassinam um jovem negro, onde apenas 15% da população negra está na universidade e a população indígena tem vindo a ser exterminada, ser preto e pobre é ter um alvo nas costas.