Músico Samuel Úria revela ao JN como nasceu "Canções do pós-guerra", álbum de sentimentos mistos que regressa à estrada em 2021.
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"Se soubesse o que sei hoje teria feito um disco diferente. Sinto que não estou a oferecer escape, mas sim a proporcionar que se chafurde ainda mais no problema". A confissão é de Samuel Úria e remete para a sintonia entre o seu novo álbum, "Canções do pós-guerra", e a pandemia que impediu o seu lançamento na data prevista, em abril de 2020.
A sentença é algo pesada, e um pouco injusta, mas o cantor e compositor oriundo do movimento Flor Caveira, editora independente fundada em 1999, explica-a com a proximidade dos conteúdos do disco àquilo que se verificou na sociedade no último ano: "Não vaticinei o que ia acontecer quando escrevi as canções, mas talvez por ser um pessimista crónico falo de uma série de fragilidades, latentes ou ostensivas, que vim a confirmar com desgosto quando este fenómeno chegou".
Samuel Úria ainda reconhece que houve solidariedade e união no início da pandemia, mas depois o que sobreveio foi "a divisão, os revisionismos, a desconfiança e o negacionismo". "Vivemos em terreno arável para as falsas virtudes", diz o músico, criticando aqueles que se tomam por "campeões da liberdade" por recusarem a máscara e as normas das autoridades, como a rapariga alemã que apareceu recentemente num vídeo a comparar-se a Sophie Scholl, mártir da resistência antinazi guilhotinada em 1943. "É também um tempo favorável aos que arregimentam pelo medo, que devem andar a esfregar as mãos de contente".
A primeira canção
Mas "Canções de pós-guerra" não se limita ao "negrume" e às "coisas pesarosas". Oscila entre os sentimentos de uma situação de ressaca, que tanto pode ser de um conflito armado como de contendas pessoais. "Tem a ver com um período de reflexão, ou de recusa da reflexão. Com a esperança e o desespero, o alívio e o luto". A linha temática do disco tem ascendência no EP de 2018 "Marcha atroz" e o seu rastilho na canção "Fica aquém", a mais politizada de todo o álbum. "Penso nos discos de forma algo conservadora, gosto que haja uma unidade temática e conceptual. E parto sempre da primeira canção para escrever o resto, é ela que desamarra o processo. Como escrevo em pouco tempo, neste caso três, quatro meses, há também uma unidade naquilo que sou durante esse período".
Coleção de baladas onde se entrelaça o rock, a folk e o blues, o disco abre com "Aos pós", tema que parece saído de "10 000 anos depois entre Vénus e Marte" de José Cid. Conta com a guitarra de Miguel Araújo em "As traves" e a voz de Catarina Falcão em "Cedo". "Contenção", por jogo e ironia, é o momento mais "saltitante" do disco. A embrulhar o conjunto uma escrita delicada e complexa e uma voz capaz de constantes mutações.
Úria nunca saiu da estrada em 2020, apesar de ter feito menos concertos. Ao vivo, em cidades como Porto, Lisboa ou Aveiro, foi reparando que as limitações impostas pela pandemia eram "superadas graças ao enlevo da música", surgindo naturalmente estratégias como "erguer os braços para cima e não para o lado", e notando-se "uma vontade de encher a barriga, porque ninguém sabe quando será a próxima refeição". Correndo bem, há mesa marcada para o Teatro Municipal da Guarda a 14 de janeiro, Teatro Virgínia (Torres Novas) a 15 e Cine-Teatro João Mota (Sesimbra) a 23.