Capicua apresentou "Madrepérola" no Teatro Rivoli, no Porto, e encontrou felicidade por trás das máscaras.
Corpo do artigo
"Vou pedir-vos que usem os telemóveis para recriar um céu estrelado em noite de verão", disse Capicua já no encore do seu espetáculo de anteontem à noite, no Teatro Rivoli, no Porto, antes de iniciar o tema "Casa no campo", um dos hits do álbum "Capicua", de 2012, que a consagrou como rapper de primeira linha no panorama nacional. A frase provocou um misto de sentimentos na sala e simboliza bem o momento em que vivemos. Se só a arte e a imaginação nos salvam, em tempos tão incertos e sombrios, essa mesma capacidade de inventar outros mundos faz-nos lembrar tudo aquilo que estamos a perder no nosso.
A cantora viu essa contradição atravessar-lhe a espinha num concerto com distanciamento físico e todo o público com máscara. Deverá ser estranho para um artista: balancear sentimentos diante de uma massa onde os "sorrisos transbordam" mas não chegam a realizar-se; diante de uma plateia que parece recriar uma cerimónia distópica, com os ouvintes paralisados e de mordaça na boca. Capicua continha-se: quase perdia as estribeiras, aqui e ali, notando-se a vontade irreprimível de ignorar a pandemia e pedir que todos se abraçassem, mas ficava-se por pedidos mais modestos: "façam coreografias de cadeira"; "levantem-se e dancem dentro do vosso reduto". A imaginação salva, mas faz-nos lembrar de tudo.
Se no encore viajou pelo passado, o alinhamento principal do espetáculo foi uma visita guiada por "Madrepérola", álbum lançado este ano e gravado durante a gravidez de Capicua. É o mais "solar" dos seus trabalhos, tem insistido a cantora, que juntou uma plêiade de participantes dos dois lados do Atlântico: os portugueses Camané, Lena d"Água e Ricardo Ribeiro (além de rappers e produtores como Virtus, DJ Ride ou Stereossauro); e os brasileiros Mallu Magalhães, Karol Conka, Emicida, Rael e Rincon Sapiência.
Esse cruzamento resulta no álbum mais mestiço, dançável e luminoso da rapper portuense. E mostra que talvez a maternidade seja o único antídoto credível ao espírito malsão que alastra pelo planeta. Mesmo quando se confronta com o "apocalipse", onde já "enfiámos as quatro patas", encontra sinais de esperança ou o "copo meio cheio": "Todo o chão quer ser floresta" lida com esse lugar terminal, possivelmente já sem humanidade, mas onde a natureza reconquista o seu espaço: "A hera que trepa e tapa o betão/ A erva que rasga o alcatrão".
O Porto é também lembrado em "Circunvalação": não o Porto dos postais nem dos prémios de turismo, mas o Porto real, onde se vive todos os dias e em que "Há gunas e cotas, há muitas gaivotas/ Empresta-me um eurito para ir comer uma sopa!" Há conselhos para os novos rappers em "Cartas a jovens poetas", que se inspira nas cartas de Rainer Maria Rilke aos neófitos do seu tempo. A experiência da gravidez é narrada em "Parto sem dor" e o Brasil pulula em temas como "Mátria" e "Passiflora". Vamos olhar para o "copo meio cheio" e acreditar na música.