Peça "Tudo sobre a minha mãe" reacendeu debate sobre representatividade de pessoas trans nas artes em Portugal. Teatro Campo Alegre já tem as três récitas esgotadas.
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"Isto é um caso muito melindroso"; "é muito complicado comentar porque posso ser mal interpretado"; ou "desconheço do que se trata" - foram estas as respostas mais ouvidas pelo JN, nos meandros políticos, académicos e teatrais, quando pediu comentários públicos sobre o caso "transfake". É a prova de que a representatividade transexual na cultura é fraturante?
A polémica dura desde quinta-feira. Na récita desse dia da peça de teatro "Tudo sobre a minha mãe", adaptação do encenador Daniel Gorjão, do Teatro do Vão, do filme de Pedro Almodóvar, no Teatro S. Luiz, em Lisboa, Keyla Brasil invadiu o palco e interrompeu a peça aos gritos. Intitulando-se "atriz e prostituta transexual", subiu ao palco seminua e reclamou que o casting era "desrespeitoso" e "transfake" porque o ator André Patrício, que fazia o papel da transexual Lola, era cisgénero. A cena foi filmada por um espectador e tornou-se viral na Internet.
No dia seguinte, o encenador anunciou a substituição do ator, que faz três personagens, e contratou a atriz transexual Maria João Vaz para o papel de Lola.
teatros justificam-se
O Teatro S. Luiz emitiu uma justificação. Aludiu a "vários atos de contestação" e defendeu "a criação de condições de acesso e de representatividade de pessoas trans".
O TMP, que é coprodutor e recebe três récitas da peça - já esgotadas -, de sexta-feira a domingo, no Teatro do Campo Alegre, comentou ao JN: "O TMP tem apresentado e apoiado ao longo dos últimos anos uma programação diversa e com amplos discursos artísticos, que contou com vários/as artistas trans, de que é exemplo a programação do 91.º aniversário que terminou domingo. O TMP enaltece o resultado produzido pelas manifestações, que levou à inclusão de mais uma atriz trans no elenco, e o desfecho positivo para a comunidade artística".
"um ato despropositado"
O meio teatral reagiu com alvoroço. Nuno Machado, ator e encenador que trabalhou com o grupo de teatro da ILGA, manifestou descontentamento ao JN. "Foi um ato completamente despropositado de manifestação de ideias e que interfere com o trabalho de atores". E exemplificou: "Fiz uma peça com os Artistas Unidos em que faço de mulher. Já na Grécia Antiga os homens faziam de mulheres. Posso fazer o que for preciso que sirva ao conteúdo". E disse discordar "da maneira como foi feito o protesto, que teve um mediatismo negativo, com violência. É preciso ter referentes, não destruir e maltratar outros valores".
O ator Viriato Morais também manifestou publicamente a sua visão: disse que estávamos perante "a destruição do ato teatral".
representatividade trans
Há um ano, as atrizes transexuais Gaya de Medeiros e Maria João Vaz fizeram o casting para o papel de Agrado naquela peça. A primeira, que é fundadora da Braba, plataforma de artes de pessoas trans/não binárias, foi a escolhida. Este ano apresentará os seus trabalhos no festival GUIdance, no festival Dias da Dança, no S. Luiz com a companhia Olga Roriz e em vários teatros internacionais. Como explica ao JN, é uma "privilegiada". Diz que a invasão de palco de Keyla Brasil foi a gota de água. "Num cenário de prostituição, a relação com os clientes leva a uma urgência. É alguém que põe a sua vida em perigo todos os dias. Mas, alguém que se está a afogar não diz ao ouvido "pode por gentileza tirar-me da água"?", diz Gaya de Medeiros, concluindo que ficou "feliz com o desfecho".
Maria João Vaz, atriz transexual com 34 anos de experiência de teatro, ficou com o papel de Lola, para o qual não tinha feito casting. Isto cinco dias depois de ter terminado contrato na Burguer King. Mas, apesar do "desfecho feliz", não concorda com a forma. "Apoio os princípios, mas não o ato. Para mim foi violento". "Isto não é um concurso de quem sofre mais. É muito importante termos representatividade, mas sem violência". Ainda assim, ressalva: "Todas as revoluções foram feitas com guerra".
Segundo a atriz, Keyla Brasil recebeu várias ameaças de morte e de extradição. Um grupo de voluntários retirou-a, por segurança, de Lisboa e financiou a sua saída da prostituição para que lhe seja dado o apoio jurídico necessário.
Polémica
Ator substituído disse sentir-se "castrado"
André Patrício, ator substituído no papel de Lola, escusou-se a falar ao JN, mas comentou nas suas redes sociais ter-se sentido "violentado e castrado". Acrescentou ainda concordar que "uma minoria, agredida e maltratada, assassinada até, deva ser ajudada e apoiada pela sociedade. Seja no trabalho em geral, não só nas artes, seja na sociedade". Mas disse não ser "a favor da violência nem da invasão de palco. Também nós, trabalhadores da cultura (cis ou trans), somos uma minoria. Não temos as devidas e equalitárias condições de trabalho na nossa área. E lutamos para sobreviver", disse.