Muito do que foi escrito esta semana, por personalidades de diversas áreas, da economia à política, revela uma profunda ignorância do que são os estudos teatrais.
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Chega ao Porto em brasas o espetáculo "Tudo sobre a minha mãe", encenação de Daniel Gorjão que partiu do texto de Samuel Adamson, que por sua vez remete para o filme homónimo de Pedro Almodóvar, de 1999, que acompanhava Manuela na demanda pelo pai do seu filho, jornada em que contacta com mulheres de perfis variados, de prostitutas a freiras, num opus de afirmação da condição feminina.
O episódio ocorrido no Teatro São Luiz, em Lisboa, foi amplamente debatido: na récita de 19 de janeiro uma ativista invadiu o palco e clamou "transfake!" por ser um ator cisgénero (cuja identidade de género coincide com o sexo biológico) a interpretar uma das personagens trans do espetáculo.
O resultado foi a cedência ao protesto: o ator André Patrício saltou fora, sendo substituído por Maria João Vaz, atriz trans. Houve quem rasgasse as vestes, houve quem batesse palmas. Todos em conjunto opinaram como especialistas sobre teatro.
Há uma ideia importante que consta do título de Jacques Nichet "Le théâtre n'existe pas", que remete para uma frase atribuída a Émile Zola: "O teatro não existe; existem teatros e cada um procura o seu".
Muito do que foi escrito esta semana, por personalidades de diversas áreas, da economia à política, revela uma profunda ignorância do que são os estudos teatrais desde, pelo menos, os anos 1960. Há muito que o teatro deixou de ser exclusivamente uma arte de representação. E há muito que os atores deixaram de ter o exclusivo no palco.
Desde as experiências do teatro documental nos anos 1920 às pessoas "reais" trazidas ao palco por Peter Brook, Bob Wilson ou Pippo Delbono que existe um transbordamento entre ficção e realidade, sendo mais evidente na constelação do que se designa por "teatro pós-dramático" a emergência de conceitos próximos da performance, definida por Karlheinz Barck como "estética integrativa do vivente", ou enfatizar algo que é real através do palco.
Toda essa discussão passa no entanto ao lado de "Tudo sobre a minha mãe", que é um espetáculo convencional de representação, onde os atores se transfiguram em personagens. O tema da invasão terá de ser abordado como reivindicação política - e se é legítima ou não.
[A peça estará em cena no Teatro do Campo Alegre, no Porto, durante três dias: esta sexta-feira, sábado e domingo, com récitas às 19.30 horas.]