Se, há pouco mais de seis meses, dissessem a Américo Santos que o seu Cinema Trindade iria ter mais espectadores do que os multiplexes, o mais provável seria que considerasse essa previsão impossível. Mas é isso mesmo o que tem acontecido desde que a pandemia instituiu uma normalidade que, embora seja nova, ameaça prolongar-se por um tempo indefinido.
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"Temos procurado reinventar-nos para conseguir fazer face à situação excecional que temos vivido", adianta o responsável da Nitrato Filmes, que tem a cargo a programação no histórico Trindade. Os ciclos temáticos e o convite a realizadores para participarem em sessões comentadas são duas das iniciativas que costumam atrair um público numeroso à sala situada na Baixa do Porto.
Essas alterações profundas em curso saltam bem à vista nos números semanais do box office do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA). "Listen", a película de estreia de Ana Rocha de Sousa que conquistou quatro prémios no Festival de Cinema de Veneza, ocupa há três semanas os lugares cimeiros das tabelas, tendo já atraído às salas perto de 30 mil espectadores.
Lotações esgotadas
Com o cinema associado às grandes multidões de pantanas, o segmento independente tem sido aparentemente capaz de resistir um pouco melhor à queda brutal na afluência às salas nos últimos meses, estimada esta semana pelo ICA nuns impressionantes 82%.
Razões para essa maior resiliência não faltam, mas há uma que, segundo António Costa, da Medeia, se sobrepõe às restantes: "O público que assiste a este tipo de cinema é, por norma, mais fiel". No cinema Nimas, uma sala em Lisboa explorada pela distribuidora Medeia, a afluência tem sido "muito significativa" e não faltam sequer lotações esgotadas, embora a capacidade esteja agora reduzida a metade. Já exibido por cinco vezes nos últimos meses, o clássico "O leopardo", de Visconti, registou casa cheia em todas as ocasiões.
Também no Cineclube do Porto a adesão do público após a reabertura das salas "foi bastante positiva", segundo a presidente da instituição que se encontra a celebrar o 75.º aniversário. "Desde julho, a procura tem sido crescente, apenas interrompida nas últimas semanas pelas restrições à circulação", afirma Joana Canas Marques.
O modo menos severo como o setor independente tem assimilado o impacto da crise não invalida que as perspetivas imediatas sejam sombrias. "A situação atual não poderá prolongar-se por muito mais, sob risco de colapsarmos", considera Américo Santos, cético quanto "à redução da oferta nos próximos meses".v
Horários ajustados
Para contornar o recolher obrigatório neste fim de semana a partir das 13 horas, são vários os cinemas, como o Trindade, que agendaram sessões para o período matinal (10 horas). No caso dos festivais, como o Leffest, a solução passou por alargar o programa em três dias para acomodar as limitações nos horários.
Metade em risco
A menos que sejam aprovadas medidas de apoio específicas para o setor, a Associação Portuguesa de Defesa de Obras Audiovisuais (FEVIP) antevê que metade das salas possam fechar até ao final do ano. "Umas por encerramento total e até por empresas que descontinuem a atividade, outras por insolvência", avança a FEVIP.