Nova reunião dos textos publicados na imprensa pelo autor de "O meu nome é legião" entre os anos de 2013 e 2019.
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Ao antagonismo em que cada vez mais estamos mergulhados não escapa a própria literatura. Numa lógica pseudocompetitiva que carece de sentido, inventariam-se autores e géneros como se estes se digladiassem entre si e não convergissem para propósitos idênticos.
Mesmo dentro da própria obra, essa necessidade permanente de conflito já se faz sentir. Na bibliografia descomunal de António Lobo Antunes, por exemplo, tende-se demasiadas vezes a colocar em planos opostos os seus romances e livros de crónicas. E se não deixa de ser verdade que é o próprio escritor que, em certa medida, contribui para essa avaliação, ao desvalorizar a sua produção cronística, nem por isso deixamos de estar perante dois universos que dialogam em permanência, numa intertextualidade a vários títulos fascinante.
Afinal, assistimos em ambos, ainda que com modelos bem distintos, a uma partilha do “espaço da ficcionalidade, da intimidade e da subjetividade”, como bem sublinhou a docente Agripina Carriço Vieira a propósito de uma oficina de atores realizada pelo Teatro D. Maria II que partiu deste segmento da obra do autor de “Memória de elefante”.
A mais recente reunião das suas crónicas, escritas entre 2013 e 2019, confirma-nos o vigor do registo antoniano e o amplo domínio do género. Até mesmo quando assumem formas tão distintas como uma evocação perene da infância ou um vislumbre sobre o ofício da escrita.
Quer numa quer noutra, o leitor jamais é colocado à margem. Nestas viagens mentais ao início dos tempos, Lobo Antunes é quase sempre o miúdo que se recusava a encaixar nas convenções mais genéricas ou na expectativas dos demais; já então maravilhado com o poder que as palavras podem assumir, quando dispostas na ordem, construía universos alternativos através da escrita, em cadernos que invariavelmente destruía, por entender que ainda não tinham a qualidade suficiente.
Como um romance eternamente inacabado que abre mão de um maior experimentalismo e da propensão fragmentária presentes nas suas obras de maior fôlego, as crónicas de António Lobo Antunes são tanto um microcosmos a partir do qual entrevemos o que nos rodeia como um álbum de memórias que folheamos sempre com gosto.