Escultor revelou nova criação no Porto e apresentou-a com o som de uma tempestade lunar do grupo Candura. Foi a abertura do Amplifest 2023 e não foi menos do que espetacular.
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Não sabemos bem o que estamos a ouvir – há um piano transtornado e uma guitarra a zoar – e menos ainda do que estamos a ver, mas está a decorrer uma tempestade só de som.
É uma troada cheia de pancada e parece percorrer um planalto inóspito lunar ou um planeta só feito de gelo e vento negro. O palco está na penumbra, os dois homens em palco vestem de preto e tudo o que os rodeia dali ocultado até às pessoas sentadas na plateia – vestidas maioritariamente como imaginamos que se vestem pessoas que vão a festivais de metal, fatais como tatuagens, vendavais e orquídeas Fredclarkearas, Maxillarias, Draculas Raven e Cosmos Chocolate – é muito preto e muito espesso. (Tudo menos por acaso a guitarra que emite a trovoada e é branca .)
Há um único foco de luz, exala sem nunca se mexer sobre uma asa pendurada no centro do palco.
A asa é gigante. É de ferro. Parece a asa de ferro repousada de um condor de colar sem cabeça a flutuar. Ou um coração pisado cortado ao meio. Também parece uma branda guilhotina.
A asa é de Rui Chafes, o escultor que aprendeu a arte paralisante de capturar com ferro tudo o que é imparável, isto é, a eternidade, tudo o que já foi, tudo o que é e tudo que será, e essa asa é o centro radial da peça “From ruin”, que Chafes, juntamente com o duo drone de black metal Candura, estreou esta sexta-feira no auditório de Serralves, no Porto, na antecâmara do Amplifest, festival de “música densa e pesada” cujo 2.º dia esgotará este domingo, como no 1.º, no sábado, as duas salas do Hard Club.
A beleza aterrorizante é o motivo condutor do espetáculo que os artistas – Chafes está em sala mas não em palco, lá só gravita a asa-lâmina-coração e, por baixo dela, os dois Candura, André Hencleeday e Pedro Coragem – conduzem com a gravidade com que se conduz um apocalipse.
Com a tremenda escultura imóvel, mas a radiar uma luminescência metálica e feroz, a música que ouvimos é um só jorro proceloso e dura 60 minutos.
A impressão da tempestade é real: há paredes de fúria maciça e som, erguem-se imensas para depois despenhar, há abismos abertos perpétuos, negrura, escarpas, desolação, o ruído é uma renda só ilimitada de feridade a revoar, troam secos trovões, trotam riffs, saem chispas de feedback pelo ar, o tumulto é intangível, há tensão e o tempo parece suspenso pelo choque, apenas perduram despojos dilacerados das notas ponderosas do piano – e aquele vento incorpóreo, gelado e negro capaz de cortar um corpo ao meio só a soprar.
“Não há nenhum abrigo, apenas céu!”, grita no final com estrondo Pedro Coragem numa voz cavernosa de trovão.