Daniel Bandeira é o realizador de “Propriedade”, filme brasileiro que estreia esta quinta-feira.
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Estreou mundialmente no Panorama do Festival de Berlim. Encheu a sala no Motel/X, quando passou pela primeira vez em Portugal e estreia agora nos cinemas. “Propriedade”, o novo filme do Brasileiro Daniel Bandeira, conta a história de um grupo de trabalhadores de uma fazenda que se revoltam contra os proprietários, quando sabem que vão perder casa e emprego, para dar lugar a um hotel de luxo.
O seu filme é um retrato do Brasil de hoje?
Ainda tem as marcas do “empeachment” da Dilma, em 2016. Um momento de polarização política muito intenso. Só que à medida que o tempo foi passando, o filme também foi absorvendo o aspeto da crueldade política, de um certo sentido de contagem regressiva para a barbárie. Um período em que fomos muito confrontados com os limites da civilização política. Ainda nos representa muito, apesar da vitória nas últimas eleições. Fala de males muito antigos que ainda continuam em vigor.
O filme começou a ser escrito antes de Bolsonaro e estreou já depois de Bolsonaro. O guião foi mudando, em função da evolução da realidade política?
O filme começou como um mero exercício estético em cinema de género. Aquela mulher, presa dentro de um carro, com medo de sair, com medo das pessoas lá fora, era um desafio. Como muitos outros realizadores em Pernambuco, nós costumamos lançar muitos desafios de narrativa. Só que como também acontece com os realizadores de lá, esses desafios meramente formais acabam absorvendo também a nossa visão política do mundo. É um cinema conhecido por isso.
Como e quando é que se deu essa viragem no seu filme?
Chegou um momento em que senti a necessidade de abordar o lado de fora do carro, quem eram aquelas pessoas. Até aí a minha ideia era tratá-los como vultos. E comecei a associar imagens. Essa mulher dentro do carro é de classe média, branca, é a dona do carro. Mas quem está do lado de fora? A partir daí o guião evoluiu, para poder abarcar esse outro lado.
Sem perder no entanto a dimensão de filme de género…
Sim, como sempre quis que fosse um filme de género, acabei propondo fazer um thriller, um filme de suspense duplo, em que dependendo do ponto de vista de quem acompanha o filme, se é do lado dessa senhora, se é pelas pessoas do lado de fora, vê-se no outro o seu oponente. A ser conquistado, a ser vencido. Esse passou a ser o desafio, que houvesse um equilíbrio na forma como se sente a empatia por cada um desses lados.
Sendo um filme sobre literalmente uma luta de classes, podemos ao mesmo tempo sentir empatia por essa mulher e pelos trabalhadores do lado de fora do carro.
O grande desafio deste momento na nossa civilização como um todo é tentarmos chegar a um acordo, ou refazer os acordos, tentar entender o lado do outro, o que pode ser
negociado, cedido. É uma questão de comunicabilidade. A blindagem do carro atua muito nesse sentido. São dois universos completamente distintos, separados apenas por uma finíssima camada de blindagem. E pensar que um acordo poderia ser atingido se só se baixasse um vidro. É a grande tragédia desse nosso momento da civilização.
Os trabalhadores da fazenda parecem um pouco perdidos, sem saber muito bem o que fazer quando se veem entregues a si próprios.
Que os trabalhadores não tenham direitos é uma parte grande do problema. A outra parte do problema é que eles nem sequer sabem que possuem direitos, não têm a consciência de quais são esses direitos. Se não sabemos que temos direitos, não há maneira de ir atrás deles. O que acontece no filme é um colapso, justamente porque eles não têm uma consciência de qual a situação atual deles naquela fazenda.
O que contribui para essa falta de consciência?
Quando se tem uma linha de crédito que faz com que se tenha o seu telemóvel, que permite que se compre a sua roupa, é um tipo de consumismo que acaba por arrefecer a necessidade de exercitar o seu direito à cidadania, que é algo de muito mais profundo.
A questão da preservação das terras e os direitos dos trabalhadores está a ser mais assegurada pelos novos governantes?
Com um governo mais alinhado à esquerda, pelos exemplos que temos, pode ter-se uma tomada de consciência dos direitos e do lugar dos trabalhadores dentro da sociedade. É a pedra fundamental para que se conquistem esses direitos. Antes, com esse exemplo de direita, que nem chamo de direita, foi qualquer coisa que esteve a governar o Brasil, tinha-se uma certa normalização da precariedade do trabalho. Há um momento de inflexão do capitalismo, principalmente agora com a iminência da Inteligência Artificial, que expõe um estado de fragilidade muito grande da classe trabalhadora.
Mas sente-se agora uma nova esperança?
Vemos pessoas com necessidade a aumentar de número nas ruas. Mas sinto que há agora uma possibilidade de tomada de consciência maior, de um debate mais intenso, mais sincero, um olhar retrospetivo sobre a História. Isso ganha espaço, mas é só parte de uma consciência a ser tomada, que precisa de desembocar em direitos.
Conhecendo a importância da religião na sociedade brasileira estranha-se que tenha deixado esse aspeto de fora do filme. Porque não quis acrescentar essa camada?
As versões anteriores à que filmámos tinham uma presença muito grande da religião. Mas a religião, da forma como a vivemos no Brasil agora, sinto-a muito mais relacionada com as classes mais elevadas do que necessariamente com as camadas trabalhadoras. Não quero dizer, longe disso, que a religião, sobretudo a neo-pentecostial, não tenha uma influência enorme nas classes mais baixas. Mas os valores e a sua influência vêm-se dirigindo mais à concentração de riqueza do que à divisão.
Foi então uma opção consciente e muito pensada, deixar a religião de fora.
No filme, não vi muito lugar para falar sobre isso. Até poderia, mas levaria o filme para um viés um pouco distante do cinema de género. Estava mais interessado nessa resposta mais pronta, mais visceral, que o cinema de género provoca no espetador. A religião era um aspeto muito complexo, que eu decidi deixar de lado nesta narrativa.
Antes do genérico, vemos uma cena de uma refém salva pela polícia, filmada por um telemóvel…
A forma como a gente lida com a violência urbana tem sido cada vez mais através das redes sociais. Dos vídeos feitos por pessoas que testemunham esses casos. Por um lado aproxima-nos dessa violência, mas por outro acaba por nos alienar um pouco dela. Hoje, nos jornais televisivos, metade são esses registos. Mas não sabemos muito bem quem são essas pessoas, qual o seu nome, em que contexto aquilo está a acontecer. O jornalismo já se preocupou mais em ser um contador de histórias. Hoje é só um coletor de registos.
Essa cena baseou-se em algo de real que aconteceu?
Essa sequência é de verdade e não é de verdade. A parte de vídeo foi construída. Mas a parte de áudio é real. Com os anos Bolsonaro. tivemos uma brutalização da sociedade tão grande que me pareceu plausível que após a execução desse bandido as pessoas aplaudissem. E esse som de aplausos vem realmente de um registo real. Havia vários registos em que a polícia mata o suspeito e é aplaudida pela população.
O Brasil sempre foi habitado por muitos fantasmas. Essa é uma base fundamental para o surgimento de cada vez mais filmes brasileiros de género?
Até há pouco tempo, o cinema de género não representava uma grande faia do nosso cinema. Sempre fomos muito prolíferos em dramas sociais. Mas depois da pandemia vejo uma possibilidade do cinema de género reconquistar uma fatia do mercado que ainda não voltou para o cinema. De restabelecer um diálogo, um apelo aos espetadores de cinema. No Brasil, e fora do Brasil onde se possam interessar pela nossa realidade.
Qual o significado de mostrar o seu filme num festival dedicado ao cinema de género, de terror…
Eu sempre quis testar a validade desse conceito. Quero falar de algo que me incomoda profundamente. Mas como tenho uma maior intimidade com os elementos do cinema de género, queria saber se era possível quebrar um pouco essa tendência, essa linguagem do drama social, para tentar chamar a atenção de uma questão, mas através de uma linguagem que é muito popular, que é muito reconhecida.
Como decorreu a experiência com os fãs portugueses?
Tem sido a melhor possível. Quem faz cinema de género está muito interessado em provocar reação no outro. Uma reação de exaltação, de extrapolação de um limite. O horror tem isso, o thriller tem isso. Esse é um objetivo, um campo de testes que está a ser muito positivo. As pessoas dispõem-se ao desafio e adicionam algo à visão deles do que está acontecendo no mundo.