
Neu!
Gonçalo Delgado/Global Imagens
Michael Rother dá lição de krautrock e fixa momento do Milhões de Festa. Um saxofone é esganado no heavy metal Drunk in Hell, os Hey Colossus levantam roda-punk à séria. Achados e violências da 3.ª noite em Barcelos.
Atirados para a frente e dentro do fervor dos Neu!, podíamos nem reparar no espanto, mas somadas as idades do guitarrista e do baterista ali à frente isso dá 132 anos: os 65 de Michael Rother e os 67 de Hans Lampe, o baterista prateado parecido com Clint Eastwood (mas Clint Esatwood tem 85) e que é o mais velho entre todos de todas as 70 bandas do Milhões de Festa 2015. Ver de perto aquele magnífico e perfurante metrónomo, seco e cintilante a radiar pratos e tarolas, a camisa apertadinha até cima como os avôs, foi emocionante e deixei-me tremer.
Estávamos 2 mil na assembleia do jardim relvado de pedras do Parque Fluvial de Barcelos e dançávamos (do meio para cima sentados ou espatifados na relva ou a zumbir à volta da barraca da cerveja) enquanto à nossa frente, estrondosa, desfilava a História. Michael Rother é o fundador do comboio Kraftwerk, do trilho bombástico Neu! e das acelerações dos Harmonia e dos La Dusseldorf, tudo isto a abrir 1970 quando os alemães atiraram eletrónica como lama para cima das guitarras do rock e do blues e forjaram um esqueleto novo - o krautrock - que nos pôs a dançar quando ainda éramos a preto e branco.
Para mim foi este o lugar e o momento do Milhões 2015: à frente, na esquerda funda, debaixo da coluna de som dos Neu! a levar na cara com o vento vigoroso de "Hallogallo", "Negativland", o "Dino", "Super 16" e toda aquela "e-musik" de beleza estática possante. Adolfo Luxúria Canibal sabe da importância disso e do "motorik" e estava à frente a prestar atenção (fora do palco, o líder dos Mão Morta é normal a dançar, não se treslouca em epilepsias zombie nem ameaça que vai comer as mãos a ninguém, dança como nós, uma perna a bater o tempo, a cabeça a afirmar, bambaleia-se e sorri sem sair do sítio). A importância dos Neu! (neu é novo em alemão) e esta vinda a Barcelos são uma finíssima ironia: no festival que por cá tem sempre o maior índice de novo na música, é uma lição de História a assaltar-lhes o top. Não é senão motivo de orgulho.
Evidentemente que todas as bandas que vimos a seguir devem muita coisa a Michael Rother, sejam de punk, proto-punk, pós-punk, rock, pop, cósmicos, industriais, experimentais ou ambientais, mesmo que não se note, ele e a sua guitarra infinita são pais de muita gente que ali está.
Da terceira noite em Barcelos, tenho um favorito pesado e três episódios. Estes primeiro. Um: ter Aaron Coyes dos Peaking Lights ali fisicamente vivo a mexer em botões e a passar CDs de "psych-pop" não quer dizer que seja um concerto ao vivo. Não foi, e por isso foi muito fraco. Dois: é invulgar um grupo de punk/heavy ter um saxofone como têm os bifes britânicos Drunk In Hell. Impressionou-me esse som do saxofone degolado, a estrepitar no centro daquela barbárie controlada de niilismo encharcado em feedback e cantos fúnebres. Três: o Chile tem céus carnívoros, Bolaño e uma cena psicadélica forte sempre a remoinhar. Vi um novo vórtice: Holydrug Couple e shoegaze doce como dream pop a derreter. Os chilenos são belos bebedores: Ives Sepúlveda, o guitarrista e cantor que por acaso não parece um rocker com o seu cabelito côncavo como a malga, enfiou várias na goela uma garrafa virada de Jameson. Num desses momentos, no silêncio da passagem de uma para outra canção, dois comprovados minhotos da frente atiraram-lhe: "Bebes bem, car****!" e ele ouviu e depois sorriu.
A surpresa da terceira noite foi Hey Colossus e foi boa: uma vertigem de 4 guitarras de lâminas afiadas (uma delas é um baixo) na parede heavy-art-rock. Fiquei fã daquele despenhamento altíssimo e do diabólico Paul Sykes, um vulto de Ian Curtis, que canta irascível, a implorar "mintam, enganem, roubem, façam o que sentirem, sintam-se bem", debaixo da trovoada e da catarse que é "Hey, dead eyes, up!". Respondemos à altura: os da frente abriram uma roda-punk e, agora a sério e com poeira, fizeram mosh, ferozes e felizes a espernear, enlouquecidos pelo som (e com eles, enlouquecidos os fotógrafos que saltaram todos do seu fosso para o lado de cá, fixados no instante decisivo, cegos como paparazzos viciados em violência).
E agora a "expulsão" de palco dos Cosmic Dead, que se deu no palco Vodafone, na segunda noite do Milhões, estavam os escoceses já a tocar depois da hora, já em cima do horário das THEESatisfaction, e continuavam em palco, colados e capilares, dentro dos seus riffs infindáveis de drone rock espacial. O que sucedeu? Ninguém os expulsou, a energia do palco Vodafone, simplesmente quebrou naquela altura e eles ficaram sem corrente. Foi só uma coincidência cósmica e um acaso conveniente. O respeito pelos músicos que há em Barcelos, que só tem equivalente à altura do respeito que há que ter pelos panados alienígenas e voantes de Dona Flávia do Xispes Bar, não foi nunca beliscado.
