No novo filme de Paolo Marinou-Blanco, a atriz brasileira contracena com João Nunes Monteiro, como duas almas gémeas que procuram uma empresa dedicada a ajudar pessoas a morrer. Uma comédia negra, que fala a rir de assuntos muito sérios. Do outro lado do Atlântico, Denise Fraga este a conversar com o JN.
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Antes de “Sonhar Com Leões” esteve em Portugal a fazer “Índia”, do Telmo Churro. É só uma coincidência que tenha feito dois filmes portugueses de seguida?
Foi mesmo uma coincidência. Quando veio o convite do Paolo, eu achei que ele e o Telmo Churo tinham falado. Mas não se conheciam. Durante a pandemia, quando estávamos fechados em casa, como o meu marido e o meu filho são cineastas, fizemos uma série de pequenos episódios a que chamámos “Horas em Casa”. Fazíamos reuniões de guião e filmávamos. Pusemos 23 programas no Youtube, sem dinheiro nem nada. E foi precisamente pelo “Horas em Casa” que o Telmo e o Paolo me conheceram.
Já tinha feito no Brasil “O Cineasta da Selva”, sobre o português Silvino Santos e uma adaptação para televisão de “O Primo Basílio”. Portugal está no seu coração.
Portugal está muito mais do que isso no meu coração. A minha família tem ascendência portuguesa. A minha bisavó era de Matosinhos. Eu ficava em casa dela para a minha mãe ir trabalhar. A casa dela foi a casa da minha infância. O meu avô Joaquim, que casou com a filha dela, era de Vila Nova de Gaia. O meu tio taxista, que casou com a irmã da minha avó, era de Trás-os-Montes. Fui criada numa casa com sotaque português. Ainda tenho expressões portuguesas quando falo com os meus filhos ou os amigos.
Então não teve de se adaptar a nós, quando fez estes dois filmes.
Fui movida por uma nostalgia da minha infância. Fiquei completamente à flor da pele, com esse convívio com os portugueses. Portugal está no meu sangue, na minha vida, no meu falar. Tenho uma afinidade muito grande. Fiquei muito contente com esses convites. Fico muito feliz com esse Portugal na minha vida.
O tema de “Sonhar com Leões” é muito delicado. Teve de lidar com os seus próprios medos, para interpretar a Gilda?
Quando li o guião do Paolo, pensei quem poderia ser aquela pessoa. Quis logo conhecê-lo e perceber o que o fez escrever um guião tão original. Eu acho o filme único. Quem vai ver não o esquece, porque é uma maneira muito original de tratar o assunto. Usa completamente o humor para chamar a consciência. É uma coisa de que gosto muito, eu trabalho muito nesse limiar, é esse terreno que é o meu preferido. Adoro quando uma pessoa ri às gargalhadas, mas com lágrimas nos olhos.
Em que se inspirou, para compor a sua personagem?
Eu estava a pensar muito sobre o direito de morrer, porque a minha mãe estava numa decadência física muito grande, passou três anos na trajetória do fim, que foi mais intensa nos últimos meses. Eu perdi a minha mãe em janeiro. Não é que ache que uma pessoa tem o direito de morrer, mas tem direito à dignidade de viver. Os nossos avanços da medicina fizeram-nos por vezes pensar o que é estar vivo. Li muitos depoimentos sobre a eutanásia e saí do filme com a certeza de que é um direito de qualquer um.
Como é a situação da eutanásia no Brasil?
No Brasil a eutanásia nem é uma discussão. Há um conservadorismo crescente no Brasil. Há uma onda de extrema-direita a crescer muito. Há um retrocesso muito grande.
O fim do filme, em Maiorca, é de uma grande ternura e sensibilidade.
Todos os filmes americanos que vimos com finais cor-de-rosa fazem com que o espetador fique a torcer para que tudo se resolva e ela desista, que eles vivam um romance nas águas de Maiorca. Eu acho muito bom que o Paolo não se tenha rendido a um final americanizado. É muito bonito o que acontece no final, com esse terreno do impalpável, diante da nossa capacidade de decisão de morrer. O desejo existe, mas quando chega a hora da execução, da escolha da hora e do dia, vê-se que não é uma decisão fácil.
Contracenou com um jovem ator, que já é uma certeza. Como é que decorreu o trabalho com o João Nunes Monteiro?
O João ficou um amigo querido. Houve uma química, é um ator maravilhoso. Quando o Paolo me falou no João fui investigar sobre ele, vi o “Mosquito” e outros filmes que ele tinha feito e fiquei muito impressionada com o trabalho do João. É outra coisa muito bonita do guião, esse casal improvável, pelos modelos mais tradicionais. Mas isso nem é um tema do filme, ninguém fala da diferença de idades deles. O que é lindo é ver essas duas pessoas num grau de cumplicidade e intimidade, essa paixão no crepúsculo da vida.
E o Paolo Marinou-Blanco, como é como realizador?
O Paolo é um realizador muito especial. E é um diretor de atores maravilhoso. Eu sou uma pessoa muito ligada à palavra, ao bordado das palavras. A comédia exige muito isso. Costurar, bordar uma pausa. Como a música, a comédia tem um tempo. Precisa de silêncios, de olhares precisos. A comédia precisa de escolhas e o Paolo é muito bom nisso. Sabe muito bem o que quer e o que te pede.
Sentiu que o filme também era especial para ele?
Uma das motivações do Paolo foi ele e a mãe terem segurado muito o pai, que tinha o desejo de morrer, porque já estava no hospital há muito tempo. O pai dele queria ir e cantava muito a música que se ouve no filme, “Eu vou para Maracangalha”. Eu disse-lhe que tínhamos de colocar essa música no filme, como homenagem ao pai. Lembro-me que ele ficou muito tocado, vi que tinha ficado arrepiado.
O cinema brasileiro está em alta, com o sucesso fenomenal do “Ainda Estou Aqui”, um dos filmes mais vistos nos últimos meses, também aqui em Portugal.
Foi incrível o que aconteceu. É muito bonito ver um país inteiro torcer por uma atriz como torce por um jogador de futebol. Virou uma comoção nacional. Pessoas no Carnaval, nas ruas, vestidas como a Fernanda Torres. Além de ser o filme incrível que é, conta-nos uma história que nos foi sonegada. Que não nos foi contada como deveria ser. Este filme ganhar esta dimensão e levar tanta gente ao cinema, é de uma enorme importância.
Foi como que um respirar de alívio, depois de tudo o que aconteceu no país, não?
Sim, depois de um governo de quatro anos de Bolsonaro, um presidente deliberadamente inimigo da classe artística. Nós sofremos uma difamação aqui, muito injusta. Então ver isto acontecer, ver as pessoas emocionar-se com o filme, ver a Eunice, aquela mulher, ser reconhecida. É uma personagem emblema no Brasil. Não existem histórias suficientes que possam contar tudo o que se passou na ditadura, como nos anos de Salazar que vocês tiveram. Sobretudo numa época em que se vê gente na rua a pedir a ditadura militar...