Sex Pistols tomaram a noite de Vilar de Mouros de assalto e encerraram, em fúria, o segundo dia do Festival CA Vilar de Mouros. A julgar pela quantidade de pessoas que gritou que quer ser anarquista, as eleições autárquicas deviam ser já canceladas. The Damned abriram para eles e fazem-nos pensar que raio de bebida tomam as bandas inglesas para serem tão longevas?
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A noite da segunda jornada do CA Vilar de Mouros abriu com uma provocação silenciosa: um cão, vestido a rigor, em preto e vermelho às riscas, entrou em palco ao lado do dono. Os The Damned sabem jogar com símbolos. Há quase meio século que o punk vive dessa teatralidade - da estética que Vivienne Westwood cosia na King"s Road até ao gesto que Johnny Rotten sempre cultivou: a gargalhada que não pede licença. No público, alguém exibia a inscrição "Somos punk, somos rock, bebemos Sagres ou Super Bock". Portugal a cruzar-se com a rebeldia britânica, como se fosse possível erguer uma bandeira de cerveja contra o establishment.
A plateia era um museu vivo do caos: máscaras de Zorro, carrinhos de bebé encostados à grade, gente em direto pelo telemóvel para amigos de pijama, como a Susana, que confessava "não perco um segundo, mesmo do sofá". Quando soou "History of the World", todos entraram em uníssono - como se a canção fosse um hino que unia gerações, dos que viram Sid Vicious tropeçar nos palcos às novas tribos digitais que consomem punk em streaming.
A certa altura, pediram um saca-rolhas em palco. Não para um gesto teatral, mas para abrir vinho tinto. Punk nunca foi sobre requinte, mas sobre subversão. Beber vinho engarrafado em copos de plástico é tão político quanto gritar "You"re all I need but she's not there", do clássico "Eloise". A festa estava montada e até o punk que dormia, deitado no chão, na primeira fila parecia parte da performance. "Ele só está a reunir forças para os Sex Pistols", dizia a namorada, como quem desculpa um corpo cansado mas não uma alma punk.
Quando desceram do palco, havia uma sensação de que os The Damned continuam a lembrar-nos a importância da pose, da caricatura, da cor como manifesto. São todos parentes daquela resiliência britânica, que produz bandas e músicos como baratas capazes de resistir ao tempo e a qualquer cataclismo; ( Rolling Stones, Pink Floyd, Iron Maiden, The Cure, Depeche Mode, Blur, Manic Street Preachers, James, Sting e por aí fora) e cada concerto é sobrevivência.
A entrada da realeza punk
Os Sex Pistols surgiram em formato renovado, com Frank Carter a assumir a dianteira. A metáfora da "realeza" fez-se carne: Carter surgiu com tripé na mão, t-shirt dos Motörhead, a encarnar um herdeiro legítimo do caos. Começaram com "Holiday in the Sun", num grito contra a guerra que não envelhece. Era Rotten sem Rotten, e no entanto, era o espírito dele que pairava sobre cada acorde. Johnny pode já não estar no centro da roda, mas o seu sarcasmo continua a guiar o espetáculo.
O mosh pit explodiu como sempre. "That's where the real fun is", disse Carter, e a frase não era metáfora: corpos a colidir, suor como manifesto político, o vazio preenchido pelo choque. Tocaram "Pretty Vacant" e o chão parecia um vulcão. Em palco, Carter provocava: "Are you tired? We're not tired". O público respondeu em fúria. Quando chegou "God Save the Queen", houve quem sussurrasse desilusão - não pela música, mas porque neste tema, Frankie lembrou-nos muito vincadamente que não é Johny. Mas logo seguiu "No Fun", repetido em mantra, até que o festival parecia um culto desgovernado. Steve Jones, Paul Cook, "o homem mais doce do Mundo" e Glen Matlock continuam presentes. O último foi bombardeado, da plateia, com exemplares do seu livro "Triggers, a life in music...." sobre os Sex Pistols, que os fãs queriam que ele assinasse.
No meio da selvajaria, houve ternura: Frank anunciou que ia ser pai. "Love you, bubba", atirou, num contraste improvável. O punk que destrói também constrói. E constrói famílias. Pegou no telemóvel de um festivaleiro e transformou-o em câmara oficial, partilhando a intimidade de palco. Depois, inesperado, encerrou com "I Did It My Way", uma versão punk de Sinatra, com as luzes dos telemóveis a substituir isqueiros. Uma paródia e uma homenagem, como sempre foi o punk: rir-se do mundo, mas nunca sem emoção. "Anarchy in the UK" fechou o tremendo concerto.
Entre Sid e Nancy, e nós
Deus não salvou a rainha, nem Sid, nem Nancy, mas a noite deixou claro que o punk não é só música. É herança. É Westwood a desafiar a moda, é Sid e Nancy no romance trágico que ensinou que a autodestruição também é espetáculo, é Rotten a cuspir palavras como quem cospe fogo. Mas é também cada anónimo na plateia: a Susana de pijama, o homem que dorme na fila da frente, o cão que veste como o dono.
O punk continua vivo porque se reinventa em cada corpo estranho que ocupa o espaço. E Inglaterra, com a sua tradição de resistência cultural - dos Sex Pistols aos Depeche Mode, dos The Damned aos The Cure - lembra-nos sempre que sobreviver é, também, um ato estético.
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