Na sociedade há três fenómenos que conseguem cruzar as classes: o futebol, a política e inevitavelmente os rituais de vida e de morte. E depois há estranhos cataclismos como os James que atuaram pela 60.ª vez, em Portugal.
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O Vilar de Mouros, esse anfiteatro onde a música parece sempre ecoar com um peso telúrico, voltou a ser palco de uma noite que ficará inscrita na memória coletiva. No recinto plano de palha, húmido e impregnado de um perfume de terra molhada, a comunhão foi absoluta: os James regressaram a Portugal, pela 60.ª vez, como quem regressa a casa. E não há metáfora mais justa - o público esperava-os como quem espera um amigo de sempre, com a certeza de que será de novo arrebatado.
E arrebatados fomos. Mal se ouviram os primeiros acordes de "Tomorrow", já todo o festival, à pinha, cantava em uníssono. Não eram vozes dispersas, mas uma só massa sonora, um só corpo a vibrar. Betos bronzeados de veraneio, acabados de sair das casas de família em Moledo, misturavam-se sem hierarquias com punks da Azambuja, famílias de Braga, do Porto, de Barcelos - tribos tão díspares, unidas pela catarse que só um concerto destes permite.
No centro, Tim Booth - figura luminosa, vestida de branco, dançava como um polvo em transe, braços a serpentear, olhar em chamas. A sua voz, ainda hoje, é uma muralha de potência e emoção. Chloe Arper, a percussionista, revelou-se uma força primordial: cada batida moldava o coração do espetáculo. E quando se ouviu "She's a Star", o verso ecoou quase profético - "Her shadow is always with her, so frightened that he won"t love her she builds up a wall. She"s a star" - como se o público reconhecesse naquela canção uma verdade íntima, uma fragilidade partilhada.
Entre canções, Booth introduzia novos temas com ironia e reflexão: "Uma música sobre a loucura nos EUA agora..." - e "Heads" surgia como um espelho sombrio de "ganância e fake news". Em "All is frustrations" o festival parecia suspenso entre raiva e libertação. E então chegou "Sit Down": milhares de braços erguidos em direção ao céu estrelado, enquanto até os septuagenários, entre tentativas de twerk interrompidas por dores nas costas, se entregavam a uma coreografia de vida.
Mas um novo clímax ainda estava por vir. Booth subiu à grade e mergulhou sobre a multidão, que o transportou em êxtase enquanto cantava "Getting Away With It (All Messed Up)". Foi um momento de total abandono, um mergulho literal na confiança entre artista e público. Logo depois, "Laid" incendiou a noite, nove músicos em palco e milhares em terra firme, todos aos saltos, todos cúmplices da mesma euforia, "light my eyes, and call me pretty".
E, quando parecia impossível regressar ao chão depois de James, chegaram os The Kooks. Trouxeram uma energia diferente, mais solar e leve, mas ainda assim certeira. Abriram com "Sunny Baby" e, de imediato, Luke Pritchard - em calças de cabedal, encarnando um rockstar à moda antiga - assumiu o comando. "She Moves in Her Own Way" fez renascer o refrão de uma geração, arrancando sorrisos cúmplices entre amigos que cresceram com aquela banda sonora.
Se James foram uma catarse mística, um ritual de pertença, The Kooks foram a festa adolescente que não queríamos largar. Dois concertos, duas linguagens, um só território partilhado: o da música que une, que atravessa idades, estilos, geografias.
O Vilar de Mouros, com o seu cheiro a terra e memórias que se confundem com a própria história da música em Portugal, voltou a provar porque é um festival mítico. Ali, sob o céu aberto do Minho, entre famílias e tribos improváveis, percebe-se que certos concertos não são apenas espetáculos: são capítulos de uma narrativa maior, a de uma comunidade que encontra no som um lar.
James confirmaram-se como velhos deuses do palco, intemporais, e The Kooks como mensageiros de uma alegria pop que não se esgota. No fim, ficou a certeza: todos regressaram diferentes, como se tivessem partilhado um segredo que só a música pode revelar.