Entre intervalos e pontos finais na carreira, há histórias felizes, mas não são a maioria.
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"O setor da Cultura foi o mais afetado pela pandemia." A afirmação foi repetida até à exaustão pelos agentes, sublinhada pelas autoridades, demonstrada pelas estatísticas e corroborada pelo Governo. Mas quando se desce à esfera individual, com nome e com rosto, o que aconteceu aos trabalhadores da Cultura durante a pandemia?
A maioria teve de reinventar-se. Quem tinha uma almofada financeira, conseguiu cobrir o ano de 2020, mas a poupança esgota-se e as consecutivas vagas obrigam a "pôr comida na mesa", contam.
As histórias que o JN pode contar são de sucesso. Como se de cada vez que se fecha uma porta se abra efetivamente uma janela. É um relato faccioso. Nem todas são assim. Há dezenas de pessoas contactadas que não querem dar a cara. "Acha que quero mostrar publicamente que falhei?", pergunta uma artista, que trocou os palcos pela reposição de um supermercado. O mesmo acontece com um DJ que se reinventou a fazer entregas da Uber e regressou a casa dos pais. "Não era o que imaginava quase aos 50 anos." Há uma bailarina que agora trabalha como ama e diz não poder regressar. "Eram os últimos anos da minha carreira. Dancei a última vez sem saber que o era".
Rita Melo: desejo de verde
Rita Melo trabalhou mais de uma década na sua empresa de conservação e restauro. Exaurida pelas condicionantes e pela instabilidade, decidiu reinventar-se e começou a trabalhar em eventos e, parcialmente, no alojamento local. Tudo corria bem.
Estava de férias, a despedir-se do verão brasileiro, em março de 2020, quando se viu obrigada a regressar. "Durante algumas semanas", julgou, como todos. Mas, de repente, "não havia nada, nem turismo, nem eventos. Não entrava dinheiro nenhum", conta ao JN. Entregou as casas e começou a estudar o mercado. "Havia um grande desejo pelo verde. As pessoas estavam viradas para o interior."
Com a sua experiência, começou a reciclar vasos, dando-lhes uma nova cara, e a fazer macramé. Criou a marca Ri.ma_byhand.
Dada a fragilidade dos materiais, não vende online. Depois da primeira experiência, numa loja pop up, tem agora os trabalhos à venda na Loja, na Miguel Bombarda, no Porto. Os eventos regressaram a conta-gotas em 2021. Quanto ao turismo, diz, "veremos".
Viriato Morais: da ficção para a realidade
Em 2022, Viriato Morais é agente imobiliário, mas na verdade é ator conhecido. Recorda: 2020 era um ano com "imenso trabalho, ia fazer quatro longas metragens". Rodou apenas 15 dias com Edgar Pêra, todos os outros trabalhos caíram.
Para fintar a imprevisibilidade da representação, trabalhava como guia turístico, fazia "walking tours" no Porto. De repente, a 13 de março, fechou tudo. "Como ator, estou habituado a estar meses sem fazer nada, estava tranquilo."
Em novembro de 2020, acompanhou um colega a uma entrevista a uma imobiliária. "Ouvi a conversa e pensei: Ok, posso estar em casa, online, nesta fase inicial. Gosto de aprender, é uma nova indústria, é melhor do que não fazer nada."
Curiosamente, 2021 não foi mau. "Gravei ImLove, para a RTP Play, "Crime do Padre Amaro", com o Leonel Vieira, e o novo filme do Rodrigo Areias." Nenhum destes trabalhos foi um projeto recuperado de 2020.
No dia 1 de março. Viriato Morais regressa ao palco com um projeto sobre a Carta de Pedro Álvares Cabral. "Não subo ao palco há seis anos: por falta de público, de dinheiro e de excesso de trabalho para um fim de semana. Mas agora que o Mundo está a falhar, perdi a vergonha", diz, mordaz.
Quanto à imobiliária, diz fazer uma "avaliação a cada seis meses" e confessa a desilusão. "É ver o pior da Humanidade, uma gestão da expectativa que está fora do meu controle."
Luís Cardoso: caminho da resiliência
Luís Cardoso era o diretor artístico do Club de Vila Real, uma associação com 125 anos. Depois de quatro meses, em julho de 2020, a associação foi obrigada a encerrar o espaço. "Vivíamos de espetáculos ao vivo e do bar. Prevíamos que a pandemia iria durar", diz. Sem trabalho, Luís Cardoso concorreu aos apoios a projetos entretanto abertos pela Direção-Geral das Artes e juntou vários artistas de teatro e música de Vila Real. E ganhou.
Em 2021 começou a trabalhar com o Maus Hábitos, no Porto, e está atualmente a gerir a expansão deste espaço para Vila Real, onde abriu há um mês. "Sou formado em Gestão e Turismo, mas sempre trabalhei em produção cultural. As coisas aconteceram, mas pelo caminho que fui fazendo até aqui."
Matilde Costa Lobo: reflexão da finitude
Matilde Costa Lobo, arquiteta, colaborava há vários anos com um gabinete de arquitetura no Porto. Na fase inicial da pandemia, depois de algum tempo em casa, voltou ao escritório. Como o trabalho de arquitetura é dilatado no tempo, "não houve efeitos imediatos no volume de trabalho. Em 2021 foi quando começou a existir uma quebra de novos projetos. As obras que já estavam a correr, continuaram".
A fase de incerteza espoletou, explica,"um fenómeno psicológico sobre o que é a vida e a finitude de tudo". Nessas reflexões, a arquiteta começou a pensar nas coisas que realmente gostava de fazer, como cozinhar. "Mas não queria passar o dia numa cozinha ou abrir um restaurante, pretendia descobrir mais caminhos", conta. Por herança familiar, possui uma quinta em Trás-os-Montes, onde existe uma pequena produção de castanhas e avelãs. E assim tentou encontrar algo para juntar os dois mundos.
Despediu-se e partiu para a Sicília, para estudar "Sustainable Food Systems", onde além da gastronomia estuda disciplinas, como ética e semiótica.
Mas, como explica ao JN, não quer dar uma versão neoliberalista da sua história. A alavanca da mudança também se prende com uma "perda substancial de rendimento".
Ismael Calliano: salvo pela poesia
Ismael Calliano é ator. Para driblar a volatilidade da profissão, trabalhava na restauração, no Porto. Em março de 2020, assinou um contrato para trabalhar num restaurante. No mesmo dia, a sua mãe esteve seis horas numa ambulância à espera de saber se estava infetada com covid-19 para poder dar entrada no hospital. Teve de sair do trabalho, acabado de começar, para a assistir. Rescindiram-lhe o contrato.
Seguiram-se três meses em casa da mãe, e uma catadupa de cancelamentos de espetáculos. Até as noites de poesia "Menina e moça", que fazia às quartas-feiras.
Os castings para cinema e para televisão também se transformaram em "selftapes". O apoio que recebeu pela "redução de atividade foi de 110 euros, 90 dos quais foram para a Segurança Social", conta ao JN.
"A poesia salvou-me em 2020." O único trabalho que teve consistiu em fazer vídeos de poesia para a Casa das Artes de Felgueiras.
No meio da incerteza, decidiu ir viver com a namorada, acabada de regressar de Bruxelas, onde trabalhava. E candidatou-se ao programa Garantir Cultura, um incentivo a fundo perdido para relançar a atividade cultural. Fez o espetáculo e recebeu "a primeira tranche. A segunda deveria ter chegado em setembro de 2021". Não chegou. Este ano terá de pagar IRS de dinheiro que não recebeu.
Nesse mesmo mês abraçou a paternidade e um contrato como chefe de bar, na Rua Cândido dos Reis, no Porto. O novo emprego também teve os seus percalços. "Havia dias em que faturávamos um café. A ideia da Cândido dos Reis a abarrotar de gente já não existe. O verão correu bem. Mas no fim do ano fomos para lay-off e depois fiquei infetado ", lembra. Agora, com necessidade de outra segurança, diz: "Não abdiquei dos meus sonhos, mas tenho um filho".
União Audiovisual e Apuro foram um porto de abrigo
A União Audiovisual é um grupo informal de profissionais do setor, que contribuiu para que quem ficou sem trabalho durante a pandemia não ficasse pelo menos sem ter o que comer. A Apuro - Associação Cultural e Filantrópica, criada durante a Troika, apoiou Intermitentes do Espetáculo, dado ser uma das suas missões estatutárias. As duas entidades prestaram apoio a inúmeros trabalhadores durante a pandemia.