No regresso aos romances, com “Vida e morte nas cidades geminadas”, Sérgio Godinho entrelaça o belo e o banal na mesma história.
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No romance como nas canções, Sérgio Godinho espreita para as vidas comuns. Não necessariamente na perspetiva voyeurista de que tantos se alimentam, mas para se acercar melhor dos mistérios ou enigmas que, dizendo antes de mais respeito à essência de cada um, carregam, afinal, uma dimensão muito mais ampla do que poderíamos supor à primeira vista.
Dir-se-ia que, mais de 50 anos depois de ter trocado o curso de Economia no Porto pelo de Psicologia na Suíça, onde foi aluno de Jean Piaget, continua investido desse desígnio maior de decifração da alma humana. Ao invés de tratados da especialidade, o resultado dessa investigação surge sob a forma de criações artísticas, no que constitui apenas mais uma das particularidades que ajudaram a construir o seu percurso.
Se, na música, as centenas de canções que compôs e escreveu ao longo desse período nos deixaram um lastro inconfundível em torno das grandes questões que mais o fascinam na natureza humana, também na literatura – mais especificamente no romance – essa marca autoral já começa a ser notória.
Depois de, no anterior romance, “Estocolmo”, publicado em 2019, se ter debruçado sobre a dimensão obsessiva que as relações podem assumir, agora Godinho entrega-se a um exercício ficcional mais lato. No cerne da história, encontramos uma jovem vimaranense (chamada Amália Rodrigues e também ela fadista, embora amadora) que emigra ainda adolescente para a França. Aí conhece, após uma desilusão amorosa inicial, Cédric, com quem estabelece um vínculo imediato, mesmo antes de saber as assombrosas semelhanças biográficas entre ambos, como se fossem gémeos separados à nascença.
Em pouco mais de duas centenas e meias de páginas, o leitor acompanha os picos e os declives de uma relação que ambos julgavam fadados durar para sempre, mas cujos obstáculos – a começar na distância física que se cria a partir do momento em que Amália regressa a Portugal para dirigir um hotel na sua cidade natal – se revelam bem mais intransponíveis do que gostariam de acreditar. A vida e a morte, o belo e o banal, o profundo e o superficial, sucedem-se numa narrativa que aspira a ser uma súmula da contradição permanente que é a vida.
"Vida e morte nas cidades geminadas"
Sérgio Godinho
Quetzal