O Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP) termina este domingo com três tempos, três disciplinas, três maneiras de fechar o Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP). Este sábado o festival ainda teve muito para oferecer, sobretudo paulada.
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No Jardim de São Lázaro, o sino toca e anuncia: "Está na hora." O público começa a juntar-se. Há famílias, crianças curiosas, turistas que se aproximam devagar. José Gil, da SA marionetas, de sorriso aberto, pede às pessoas para fazer um pequeno aquecimento. O palco é simples - uma pequena barraca de madeira, colorida e vibrante - mas ali dentro vive um dos maiores tesouros do teatro português: Dom Roberto, o herói intempestivo do teatro tradicional de marionetas de luva, recentemente reconhecido como Património Cultural Imaterial de Portugal.
"Porra, tudo começa pela porra!" - dispara a voz rouca e viva do boneco, sem censura nem filtro. O público ri-se, surpreendido pela franqueza. Seguem-se duas histórias do século XVIII: O Castelo dos Fantasmas e A Rosa e os seus Três Namorados. José Gil, marionetista e guardião desta arte, manipula as pequenas figuras com ritmo e ironia, como quem revive uma herança que se mantém pulsante.
No primeiro conto, o Dom Roberto enfrenta o Gigante, o dono do castelo, para salvar a princesa. "Estás morto?", pergunta, depois de uma pancadaria virtuosa, típica deste teatro físico e oral. "Por fim, já posso casar com a Princesa!", grita, e a plateia aplaude. No segundo episódio, Rosa recebe a corte de três pretendentes - o sapateiro, o ourives e o brasileiro. Cada um tenta conquistar o seu amor com presentes extravagantes: sapatos, ouro e beijos. O patrão também entra na disputa. A moral é ambígua, antiga, "não boa para os padrões atuais", como comenta o próprio José Gil entre gargalhadas. "Ou seja, não é para crianças", brinca.
Teatro Dom Roberto no Jardim de S. Lázaro no Porto
Foto: Igor Martins
No final, vem a polícia e prende todos os namorados e o patrão. Rosa, esperta, fica com a patroa. Tudo termina em festa e pancada, como manda a tradição. O público aplaude com entusiasmo.
Este espetáculo foi dedicado a João Paulo Seara Cardoso, mestre da marioneta contemporânea e fundador do Teatro de Marionetas do Porto, lembra José Gil, evocando a linhagem viva desta arte popular. "Somos 13, de norte a sul do país, que ainda fazemos isto", diz com orgulho. A S.A. Marionetas, companhia de Alcobaça, preserva a técnica e o espírito de um teatro que sobreviveu à censura, ao tempo e à modernidade.
O casamento de Dom Roberto com a princesa é celebrado simbolicamente ali, no jardim, ao ar livre, entre gargalhadas e o som das marionetas a bater. E, por uns instantes, aquele pedaço de cidade transforma-se num palco antigo, onde o humor, a irreverência e a ternura coexistem. É teatro de rua, sim - mas também é memória coletiva, uma forma de resistência que continua a dizer o essencial: rir é um ato de liberdade.
"Anito" - quando o corpo se torna um altar
No mesmo espírito de atravessar tempos e tradições, mas desta vez com australianos e filipinos, o espetáculo "Anito", de Justin Talplacido Shoulder & The Future Folklore Collective, surge como uma outra forma de ritual, vinda do outro lado do mundo. Inspirado nas mitologias das Filipinas pré-coloniais, Anito (palavra que designa os espíritos ancestrais) propõe um encontro entre o corpo contemporâneo e as forças arcaicas da natureza. Shoulder o seu criador transforma-se num mediador entre mundos: um performer que encarna entidades híbridas, com máscaras e figurinos escultóricos feitos de materiais reciclados e orgânicos.
A performance acontece num espaço quase sagrado, envolto em luz, som e respiração. Há algo de cerimonial no gesto de Shoulder - cada movimento parece uma invocação, uma tentativa de dar corpo ao invisível. Anito é um manifesto de pertença e descolonização, onde o performer reinventa mitos apagados pela história ocidental e reinscreve o corpo queer como território espiritual.
O resultado é de uma beleza inquietante: um teatro que é dança, metamorfose e chamamento. Shoulder não conta uma história - ele invoca. A plateia observa em silêncio, como quem assiste a um nascimento. A música, composta por The Future Folklore Collective, envolve o espaço num pulsar tribal e eletrónico, misturando tradição e futurismo. A cenografia e o desenho de luz decorrem constantemente no tempo dilatado da Natureza mesma. Mas dificilmente alguém presente no Teatro do Campo Alegre irá esquecer as maravilhosa e originais paisagens aquáticas que montou num espetáculo tecnicamente irrepreensível. Um delírio para cenógrafos e designers de luz.
Se Dom Roberto recorda a nossa herança popular e oral, Anito confronta-nos com o poder do mito enquanto forma de resistência. Ambos partilham o mesmo impulso: o de transformar o corpo e a palavra em matéria viva. Entre a pancada do boneco português e a transfiguração do deus filipino, o teatro revela-se na sua essência - o lugar onde a humanidade, frágil e feroz, se reconhece.
O encerramento este domingo
Três tempos, três disciplinas, três maneiras de fechar o FIMP. "Géologie d"une fable", obra que devia ter aberto o FIMP do ano passado com os libaneses Collectif Kahraba, impossibilitados de viajar pela invasão de Israel ao Líbano, atuam este domingo, às 16 horas, no Teatro Carlos Alberto. O barro moldado transforma-se em origem e linguagem, lembrando-nos que contar histórias é também escavar o chão comum onde todos assentamos.
Segue-se "O sr. Aníbal", à mesma hora, no Teatro de Belomonte. Uma viagem ao interior de uma casa-toca, onde os objetos ganham voz e o tempo se dobra entre solidão e ternura. Finalmente, "Dom Roberto" irrompe em cena, às 11 horas, na Estação da Trindade, com o seu bastão impiedoso e humor feroz, lembrando que o teatro é também resistência e festa. Entre o gesto ancestral, o quotidiano e a gargalhada popular, estas três obras traçam uma genealogia da marioneta.