Novo romance histórico de Sérgio Luís de Carvalho, "A Dança dos Loucos" (Clube do Autor) mergulha em dois episódios marcantes do século XVI - o massacre da Igreja de São Domingos, em Lisboa, e a epidemia de Estrasburgo - para dar conta das ramificações da História.
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Lisboa, 19 de abril de 1506, domingo (primeira parte)
A peste varria Lisboa há já dois anos.
Pela cidade ardiam fogueirinhas odoríferas para debelar os maléficos miasmas, enquanto tiros de canhão disparados a intervalos regulares pelos trons e bombardas do castelo tentavam repor a escorreição dos ares nocivos, pois como diziam por igual os físicos, os boticários e os barbeiros, é sabido que sendo as pestes o fruto da perturbação dos humores na atmosfera, logo - por holística osmose - também assim será nos organismos humanos, sendo 'per fas et nefas' necessária a reposição dos bons humores por via da agitação dos sopros vitais no ambiente natural, quer aéreo quer humanal.
Os que podiam fazê-lo partiam para os arrabaldes da cidade, para Sintra ou para Colares, onde a frescura era - dizia-se - mais benéfica para a saúde, já que se cria que os eflúvios pestilentos fogem da frialdade como o Diabo foge da cruz, e que os miasmas abominam a humidade tal como a natureza abomina o vácuo. Até a corte e as autoridades régias estavam recolhidas em Abrantes há semanas, pois muitos tinham ainda na lembrança os antepassados da família real que se haviam finado de peste, com as axilas, os pescoços e as partes pudendas cobertas de bubões negros, com a febre a dominar-lhes o corpo esmaecido e nauseado, com dores e cefaleias a atazanar-lhes os finais sacões da vida.
Já os populares, os humildes, os ventres-ao-sol e os patas-ao-léu, esses ficavam na cidade, pois nestas coisas... «Quem pode, livra-se; quem não pode, arreia» ...é assim a lei da vida, pois só estamos todos no mesmo barco até ao momento em que ele se afunda; depois, é cada um por si e salvam-se os poderosos.
Outrossim, desde há uns anos que o reino padecia de grande seca, os cereais mirravam nos campos e as uvas nas videiras, a carne das reses era mais pele e osso que chicha e banha e o custo do pão e do vinho subia a cada estação, de tal maneira que os mais pobres não lhes podiam chegar, limitando-se a comer pão de bolota e a estender as magras mãos à caridade alheia pelas esquinas e cunhais e a recorrer ao auxílio dos padres, que, diga-se, nem sempre tinham com que lhes saciar a fome, a sede e o temor.
Para debelar a praga, rezava-se, rezava-se muito, rezava-se a Santa Catarina, a São Sebastião, a São Cristóvão e sobretudo rezava-se a São Roque, todos santos aprovados e certificados contra a peste. Havia pagelas deles por todo o lado, os impressores faziam bom negócio e os frades ajudavam ao negócio vendendo cada uma por um punhado de ceitis, coisa barata que - diziam - qualquer um podia pagar, mas tudo somado ao fim do dia era uma boa maquia por umas meras pagelas de santinhos, como esta de São Roque, de todas a mais popular...
«Rogai por nós, São Roque, que somos pecadores. Intercedei por nós, São Roque, que a nossa carne é fraca» ... insistiam imensos pelas capelinhas, agarrados às gravuras, que, mesmo ao preço da uva mijona, tanto lhes haviam custado a comprar.