Retrato impiedoso dos regimes comunistas a partir de uma nação fictícia chamada Eslávia, "Perestroika" é o mais recente romance de João Cerqueira, Autor do Mês no "Jornal de Notícias".
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Foucault
Matieux Foucault, o cônsul francês na Eslávia, tinha sido nomeado para o cargo há dois anos. Era um professor de sociologia da Sorbonne que havia escrito um ensaio sobre como a sociedade capitalista organizava o ensino no sentido de perpetuar o domínio das classes dominantes - a burguesia e o clero - sobre as classes inferiores. Sob a capa de uma aparente democracia, a sociedade capitalista reproduzia os modelos autoritários e classicistas do passado sendo por isso contrária aos interesses da maioria do povo. Entre as várias formas de repressão, a moral burguesa consolidava a submissão da mulher ao modelo patriarcal reduzindo-a à condição de esposa e mãe com o apoio da Igreja. Como tal, visando devolver ao povo a sua liberdade e os seus direitos, assim como promover a emancipação feminina, urgia substituir o capitalismo pelo socialismo. Embora ignorado pelos leitores, o livro fora elogiado nos meios académicos franceses, o que trouxera algum prestígio a Foucault.
À falta de melhor, o governo francês decidiu então convidá-lo para cônsul na Eslávia. Foucault, ante a oferta de um salário superior ao que auferia na Sorbonne que o ajudaria a pagar o empréstimo para a compra de uma casa em Paris, aceitou. O seu cargo consistia em promover a cultura francesa naquele país. De início, Foucault lançou-se com entusiasmo ao trabalho criando todas as semanas sessões de cinema, exposições de arte e conferências no consulado que não costumavam atrair mais de cinco pessoas. Depois, começou a servir vinhos franceses durante estes eventos e o público aumentou para o triplo. E, por fim, reduziu a promoção da cultura francesa a provas de vinhos e queijos, e o consulado revelou-se pequeno para receber as centenas de pessoas que começaram a aparecer.
A admiração de Foucault por um regime que estava a colocar em prática as suas teorias também se alterou rapidamente. Da euforia passou, em menos de um mês, à depressão. Julgava que ia para um lugar onde o sol nascia para todos, mas só encontrara trevas. A Eslávia era o mais pobre e menos desenvolvido dos países de leste, tornando a Roménia um exemplo a invejar. Os seus dirigentes tinham criado um sistema repressivo assente no exército, na polícia política e em campos de concentração que reduzia a opressão capitalista a uma brincadeira de crianças. O povo vivia espezinhado, amedrontado e esfomeado. Os dirigentes faziam o que queriam e viviam no conforto burguês. Todavia, Foucault acreditava que o comunismo era um processo que se efetuava por etapas, a subida de uma montanha com vários níveis. E a Eslávia, por agora, estava ainda no nível zero. Bom, às vezes, estava mesmo abaixo de zero.
Para combater a desilusão, primeiro tentou escrever um novo ensaio sobre os malefícios da sociedade de consumo, mas, afastado das lojas e dos supermercados de Paris, não conseguia apontar a mira ao objeto da sua crítica. Depois começou a beber em demasia, mas logo lhe recordaram que a França não se podia apresentar embriagada diante da Eslávia. Até que por fim descobriu aquilo que lhe dava mais prazer e o fazia sentir realizado (além de o fazer esquecer o desgraçado país onde se metera): mulheres, mais bonitas e mais fáceis do que as francesas.
Foucault descobrira que as mulheres da Eslávia, mesmo sujeitas a uma dieta minguada, a condições de trabalho paupérrimas e a maus-tratos por parte dos pais, namorados e maridos, eram muito atraentes e, novidade ainda mais interessante, adoravam estrangeiros. E foi assim que o cônsul francês, cedendo às tentações da carne, começou a colecionar amantes e depois, cedendo à tentação da ganância, percebeu que poderia ganhar dinheiro à custa delas - e assim liquidar o empréstimo da compra da casa. A indústria da pornografia estava em crescimento graças à invenção do vídeo e o apetite por mulheres exóticas não parava de crescer. Ora a Eslávia, tal como a Tailândia, oferecia tudo isto por meia dúzia de dólares. E ao invés de se sentir um explorador da mulher e da pobreza, Foucault convenceu-se de que os seus filmes contribuiriam para minar os valores conservadores da sociedade capitalista e a moralidade hipócrita da Igreja. Embora parecessem parodiar o comunismo, o seu alvo era a destruição do capitalismo. A moral burguesa podia ser arrasada mediante a análise sociológica ou com quatro pessoas numa orgia - aquelas mulheres eram a antítese das esposas e das mães submissas. O povo não havia compreendido a linguagem académica, mas iria entender a linguagem do corpo. Se as massas tinham ignorado o seu livro, não iriam resistir aos seus filmes. Ambos apelavam à revolta contra o sistema. Consumir pornografia tornara-se um acto de rebelião.
Com os ventos de liberdade trazidos pela Perestroika, tornou-se mais fácil para Foucault recrutar actrizes e actores (bastavam dois por filme, enquanto precisava de pelo menos quatro mulheres) para os seus filmes pornográficos. Além das suas amantes, abordava as candidatas junto das universidades, dos clubes desportivos e das fábricas. Buscava raparigas com idade entre os dezoito e o trinta anos, altas, bem constituídas e bonitas e oferecia-lhes cem dólares (aos homens oferecia cinquenta). Cedo descobriu que havia muitas raparigas dispostas a serem filmadas em cenas de sexo pela quantia referida e por saberem que os filmes não poderiam ser exibidos no seu país (ou pelo menos a maioria da população não os iria ver). Ante tamanha oferta de candidatas ao posto de trabalho, quase se agredindo quando eram abordadas em grupo, Foucault não contrariou as leis capitalistas da oferta e da procura: o salário baixou de cem para oitenta dólares (e o dos homens para trinta). Passou então a fazer uma espécie de casting no seu apartamento onde avaliava os dotes e os talentos das raparigas. As escolhas eram difíceis pois todas se empenhavam para conseguir o papel, o que lhe causou grande desgaste físico. Selecionadas as atrizes, levava-as juntamente com os atores para uma casa que alugara e começava a filmar. O equipamento técnico resumia-se a uma câmara de vídeo Sony e o argumento dos filmes - da sua autoria - era quase sempre o mesmo: sem mais nem menos, um grupo de mulheres aparecia numa sala onde havia uma cama de casal, trocavam algumas palavras sobre o comunismo, o capitalismo e a emancipação feminina com um ar compenetrado e, de repente, começavam a acariciar-se, a beijar-se e a tirar a roupa para se entregarem a uma orgia lésbica na cama. Minutos depois entrava na sala um, ou dois, rapazes nus, diziam também algo a favor dos direitos das mulheres e juntavam-se à orgia. A partir daí, Foucault dava total liberdade aos atores e às atrizes desde que executassem todo o tipo de práticas sexuais e que as mulheres gritassem como loucas.
A entrega aos papéis que desempenhavam, a ousadia e a imaginação daquelas mulheres não deixava de o surpreender - em Paris, nem com actrizes profissionais conseguiria um desempenho tão convincente. Maravilhado, um dia perguntou-lhes se os seus violentos orgasmos eram reais, ao que estas o fitaram admiradas como se esse não fosse o desenlace natural de uma orgia. Foucault reforçou assim a convicção de que seria através da sexualidade selvagem das jovens educadas nos regimes comunistas que o capitalismo começaria a ser demolido.
Fosse como fosse, a distribuição dos seus filmes em França, através de uma editora parisiense que lhe comprou os direitos e lhe pagou royalties, rendeu-lhe num ano quase cem vezes mais do que o valor investido. Foucault pagou o empréstimo da casa e começou a pensar em adquirir uma propriedade no campo. Já o público francês não discerniu qualquer mensagem política nos filmes, muito menos a apologia do feminismo ou incitamentos à rebelião, mas sim cenas de sexo real com belas mulheres de um país exótico. Ora isso era raro no mercado e valia um preço elevado.
As manifestações dos últimos dias contra o regime tinham despertado na imaginação de Foucault o desejo de fazer um novo filme pornográfico no exterior que captasse o momento histórico que estava a acontecer. Algo na senda de O couraçado Potemkin de Eisenstein. A Perestroika parecia-lhe uma conspiração contra o comunismo congeminada pelos americanos, mas, mesmo assim, a desmesurada energia que estava a libertar deveria ser aproveitada pelo cinema. E ele era, provavelmente, o único cineasta estrangeiro (assim se considerava) que se encontrava no país com vontade de explorar a revolta do povo.
A sua ideia era a seguinte: as suas actrizes e actores misturavam-se nas manifestações da rua, gritando palavras de ordem, fazendo o sinal de liberdade e desafiando os polícias, enquanto ele filmava os seus protestos e o restante movimento das massas; se houvesse confrontos e violência espontânea, uma das suas raparigas com a cabeça rachada ou um dos seus rapazes a pontapear um polícia deitado no chão, perfeito, pois o filme seria ainda mais verosímil. Filmaria a manifestação do princípio ao fim para depois escolher as melhores cenas. No dia seguinte, as cenas de sexo seriam filmadas na casa alugada ou, ousando dar continuidade ao realismo inicial, num local público ao ar livre como o bosque que ficava próximo da cidade. Faria então uma edição do material recolhido, combinando os protestos reais com as orgias, até obter um filme pornográfico de uma hora e meia. Chamar-lhe-ia A Perestroika na cama. Claro que seria difícil associar este filme a um protesto contra a sociedade capitalista, antes pelo contrário pareceria uma apologia desse modelo, mas na balança de Foucault o lucro tinha agora um peso muito superior ao da ideologia. A casa em Paris e a propriedade no campo valiam bem um hiato no combate político. Aliás, de uma maneira ou de outra, a bem ou a mal, o capitalismo acabava sempre por triunfar em qualquer lado. Além disso, o filme seria sempre condenado pela Igreja e pelos conservadores e isso já seria uma vitória.
*
Zdanhov ligara para o consulado francês e falara com Foucault. O cônsul aceitara recebê-lo dali a duas horas. Zdanhov decidira que, dada a delicadeza do assunto, seria melhor o encontro ocorrer no consulado. No seu ministério, com guardas armados e paredes cinzentas, Foucault sentir-se-ia ameaçado, o que não ajudaria nas negociações. Todo o cuidado era pouco quando se lidava com os franceses.
O consulado de França ficava numa avenida arborizada onde existiam mansões construídas pela alta burguesia de Tiers que o Estado confiscara após a revolução. As embaixadas da Jugoslávia, da Bulgária, da Polónia, da China, do Egipto, de Angola e de Cuba tinham também ocupado esses edifícios.
Era uma construção de estilo neoclássico com dois andares, um terraço e um pequeno jardim. A fachada tinha duas colunas a suportar um frontão curvo e estava pintada de branco. A porta de entrada era de vidro e ferro com elementos decorativos a imitar a Arte Nova. No rés-do-chão havia uma cozinha e dois salões, um destinado aos eventos culturais de vinhos e queijos e o outro destinado a sala de jantar. No primeiro andar havia dois quartos e um escritório onde se tratava dos assuntos burocráticos, como obter um visto para entrar em França, uma bolsa de estudo financiada pelo governo francês ou requisitar revistas e livros aprovados pelo regime. O acesso era livre para todos os cidadãos, mas o povo sabia que entrar num consulado ocidental sem ter previamente avisado a polícia dos motivos poderia ser considerado uma tentativa de deserção punida com uma ida para um campo de trabalho. Logo, à excepção dos eventos promovidos pelo consulado - e mesmos esses eram frequentados por outros diplomatas e familiares de dirigentes -, poucas eram as pessoas que lá se atreviam a entrar. Há cinco meses um estudante entrara no consulado para pedir asilo político e fora o próprio Foucault que telefonara à polícia para o virem buscar. Fê-lo porque considerou que a imagem do regime ficaria ainda mais fragilizada como uma nova fuga para o Ocidente e, sobretudo, por não querer chatices com Paris. Desde então, a porta do consulado passara a estar fechada.
O motorista de Zdanhov estacionou à porta do consulado e o comissário da cultura e da propaganda saiu do carro e entrou na propriedade. O céu estava limpo e o sol atingia o ponto mais alto. Soprava um vento forte. Zdanhov atravessou um jardim com flores murchas e ervas daninhas, subiu os dois degraus que davam para o pátio da entrada e tocou à campainha. Foucault abriu a porta pouco depois.
- Bom dia comissário Zdanhov, entre. Aceita uma taça de champanhe?
- Não, obrigado.
- Então queira seguir-me.
Foucault conduz Zdanhov para o salão dos eventos culturais e indica-lhe um sofá azul com listas amarelas onde os dois se vão sentar. A luz do sol entra por uma janela e forma um rectângulo que se estende por uma alcatifa castanha. Nas paredes há reproduções de pinturas de Matisse, Léger e Picasso. Zdanhov considera uma desconsideração da França para com o seu país a ausência de obras originais de «verdadeiros artistas». Mesmo assim, decide fazer um elogio para iniciar a conversa.
- O consulado está muito bem decorado...
Foucault sorri.
- Gosta? É da minha autoria. Enfim, com as verbas de que dispunha não pude fazer muito melhor. Mas, diga-me comissário, de que assunto deseja falar?
Zdanhov pigarreia. Olha para uma das reproduções de Picasso - O retrato de Dora Maar - e aquele rosto deformado a chorar com o lenço nos dentes horroriza-o.
- Vim cá para falar sobre os seus filmes...
- Os meus filmes?
- Sim, os seus filmes... como hei-de de chamar-lhes... eróticos, não, artísticos...
- Ah, esses.
- Sim, esses.
Silêncio.
- É ilegal?
- Bom, na verdade não temos nenhuma lei específica que regule essa actividade. Se tivesse filmado as raparigas próximo de uma base militar poderia ser considerado espionagem, mas não é o caso. No entanto, o governo pode considerar que se está a aproveitar dos recursos humanos do país sem ter pedido autorização. Há uns anos a National Geographic teve de pagar uns milhares de dólares para poder filmar uns besouros que vivem nas nossas florestas. Além disso, alguns camaradas com pouca sensibilidade cultural podem considerar que está a produzir pornografia e ainda há a questão da fuga aos impostos. Enfim, isto pode tornar-se complicado para si e gerar um conflito diplomático grave.
- Estou a ver. E veio cá para me ajudar a superar esses problemas?
- Sim. Posso não apenas dar-lhe permissão para filmar o que quiser sem ser incomodado, como ainda colocar-lhe ao dispor meios técnicos de qualidade, assim como cenários mais ricos onde poderá explorar melhor o talento das suas actrizes.
Foucault volta a sorrir.
- É uma oferta interessante. E o que pede em troca?
- Julgo que já adivinhou, não é verdade? Estamos a viver um momento de ruptura histórica e o futuro dos dirigentes deste país não se afigura risonho...
Foucault deixa de sorrir.
- Asilo político.
- Sim, em Paris se possível.
- É um pedido muito delicado e a resposta não depende apenas de mim.
- Eu sei que a sua obra académica assenta na denúncia do sistema capitalista...
- Correcto...
- Ora o que se está a passar com a Perestroika é uma conspiração dos americanos e do Vaticano contra o comunismo. Por isso, se me ajudar estará a garantir que a minha voz se fará ouvir em França para denunciar o que se passa.
Foucault abana a cabeça.
- Comissário Zdanhov, infelizmente penso o contrário. É verdade que o meu trabalho expõe o lado negro da sociedade de mercado, mas se eu ajudar a escapar um dirigente comunista para o Ocidente estarei a contraditar-me e a contribuir para que a opinião pública se convença de que o capitalismo é o melhor dos sistemas. Nenhum de nós quer isso, pois não?
Zdanhov cerra os dentes.
- Monsieur Foucault, vamos ser sinceros. Os seus filmes são mesmo pornografia, pornografia reles à custa da exploração de umas desgraçadas que passam fome...
- Passam fome por vossa culpa...
- Não me interrompa. O senhor já entrou em contradição total com o que defendeu no passado. Vendeu a alma ao diabo por uns quantos francos. A única coisa que lhe interessa é ficar rico.
- Não me venha dar lições de moral. O seu regime é uma ditadura que prende, tortura e mata pessoas. E, vocês, os comissários do povo, também só pensam em dinheiro.
Zdanhov respira fundo.
- Então por que aceitou vir para cá? Cada um de nós tomou decisões em função dos seus interesses pessoais. Ofereceram-me um cargo e eu aceitei porque isso me deu poder e porque acreditei que estava a servir o meu país. Você fez o mesmo e talvez nem sequer tenha pensado nos interesses da França. Talvez seja por isso que o comunismo não funcionou. O ser humano pensa primeiro em si próprio e depois nos outros. Ou então nem sequer pensa em mais ninguém. A existência é um navio a afundar-se e cada um tenta salvar-se a si próprio. O mundo nunca funcionou doutra maneira. Mas neste momento temos a possibilidade de ser verdadeiramente comunistas e de nos ajudarmos um ao outro, em vez de nos afundarmos os dois.
- Não entendo onde quer chegar.
- Neste país temos a tradição de nos expressar através de metáforas, mas parece que não as aprecia.
- Prefiro o discurso objectivo da análise à subjectividade da poesia.
- Nesse caso, faço-lhe a vontade: ou me ajuda ou faço com que seja expulso ainda hoje.
Foucault levanta-se e começa a andar de um lado para o outro. Tinha as costas curvadas e os cabelos grisalhos pendiam-lhe sobre o rosto. Demora algum tempo até responder.
- Como lhe disse, a concessão de asilo político não depende mim. A França nunca albergou nenhum dirigente estrangeiro que tivesse fugido do seu país...
- Excepto os ditadores africanos que depositaram milhões nos bancos franceses.
- E você tem milhões para depositar?
- Tenho um milhão...
- Lamento, mas isso em França são uns trocos. Vai às compras aos costureiros e aos joalheiros dos Campos Elísios, compra um quadro ou uma peça de antiquário, e gasta tudo numa manhã.
Zdanhov cora.
- Tenho obras de arte valiosas que poderiam ser doadas ao Louvre.
- Sim, mas os jornalistas iriam descobrir a origem e seria um escândalo.
- Só nos países capitalistas é que acontecem essas coisas. Afinal, não deveriam ser os jornalistas os maiores defensores da cultura? E não estão no Louvre obras de arte pilhadas por Napoleão e outros conquistadores franceses? Roubaram metade dos tesouros do Egipto. Saquearam Portugal. Que mal teria pôr lá os meus quadros num cantinho? Os turistas vão perguntar de onde vieram? Parece-lhe melhor serem vendidos no mercado negro para algum coleccionador que os vai fechar num cofre?
- Eu concordo consigo. O mais importante é mostrar a arte ao público, venha de onde vier, mas a França é um país cheio de contradições. Como dizia De Gaulle, é impossível governar um país com mais de duzentos queijos. Tem a certeza que quer mesmo refugiar-se lá? A Inglaterra ou a Itália eram melhores alternativas.
- Infelizmente, os representantes diplomáticos destes países não andam a fazer filmes pornográficos.
Foucault olha para os seus sapatos de camurça.
- Dê-me algum tempo. Tenho de falar com Paris.
- Uma semana.
- Se a resposta for negativa, devia considerar a possibilidade de não me expulsar. Porque eu posso ser-lhe útil na mesma.
- De que maneira?
- Se por acaso o regime cair e você for levado a tribunal, vai precisar da ajuda da França. Se expulsar um diplomata francês, não a terá decerto. Mas se eu estiver cá nessa altura, terá um aliado importante do seu lado. Posso influenciar a opinião pública ocidental. Tenho amigos influentes nas universidades e nos jornais. Imagine os intelectuais franceses a declararem aos meios de comunicação que o antigo comissário da cultura, Zut Zdanhov, nada tinha a ver com a repressão do regime, que está a ser vítima de uma caça às bruxas, e por aí adiante. Imagine uma petição internacional a pedir a sua libertação e outras formas de pressão. As novas autoridades da Eslávia não iriam resistir.
Zdanhov olha-o desconfiado. Estavam-lhe a contar um filme em que ele não acreditava, mas naquele momento qualquer ilusão era preferível à realidade. Levantou-se, olhou de novo para o rosto dilacerado de Dora Maar e foi-se embora sem apertar a mão a Foucault.