Com o seu mais recente romance, "Perestroika", João Cerqueira concretiza uma crítica violenta aos regimes comunistas, que "fecharam as pessoas num gigantesco campo de concentração", defende o protagonista da rubrica Autor do Mês.
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É na fictícia Eslávia que João Cerqueira situa o seu romance "Perestroika", mas as situações e acontecimentos ali narrados poderiam ter lugar em qualquer país sob influência comunista, assevera.
Muito crítico face ao que diz ser a "direitofobia" que assola o meio cultural e jornalístico, o autor vianense diz que ser de direita em Portugal é "viver num regime de apartheid ideológico".
O romance "Perestroika" ganhou uma atualidade adicional no último ano, devido à guerra na Ucrânia, mas começou a ser forjado muito antes. Nesse sentido, o que tem sucedido de há um ano a esta parte não o surpreendeu?
A invasão da Ucrânia pela Rússia não me surpreendeu. Putin é um antigo agente do KGB que sonha poder restaurar os territórios da União Soviética. Aliás, considera que o fim da URSS foi a maior tragédia política do séc. XX. Foi formado pelo totalitarismo e só acredita na força bruta. O Ocidente democrático será sempre o seu inimigo.
Acredita que a literatura é um instrumento fidedigno para uma compreensão mais alargada do mundo?
Desde os primórdios, e em todas partes do mundo, os homens criaram arte, música e histórias (literatura oral). Das três, a literatura é a que fornece mais informação sobre o modo de vida e a mentalidade dos povos. O primeiro romance conhecido, "A Epopeia de Gilgamés", aborda o desejo mais antigo do ser humano: ser imortal. Os próprios historiadores recorrem às fontes literárias do passado, como os textos sagrados, as sátiras clássicas, a poesia trovadoresca, o teatro de Shakespeare, e por aí fora, para compreender melhor essas épocas. No presente, podemos aprender muito sobre outras culturas lendo os seus escritores. Por exemplo, Juan Rulfo para entender o culto dos mortos no México, Jorge Amado para entender as relações raciais no nordeste do Brasil, Yukio Mishima para entender os códigos de honra japoneses, etc.
A Eslávia, o país fictício onde situa o seu novo romance, só não existe por mero acaso?
A Eslávia foi criada a partir da informação recolhida na bibliografia sobre os regimes comunistas que tenho vindo a ler. "A Cortina de Ferro", de Anne Applebaum, foi o mais importante porque me permitiu recriar a vida diária dos cidadãos nos antigos países de leste. As senhas de alimentação, as filas para obter alimentos, a corrupção, as denúncias, o medo. A Eslávia é, pois, uma combinação da miséria, da opressão, mas também do desejo de liberdade que essas pessoas experimentaram.
Há ainda algo de Eslávia em Portugal?
Não somos uma ditadura, mas poderíamos viver muito melhor. O Estado tentacular que sufoca os cidadãos com impostos e limita a iniciativa individual, as regalias dos gestores das empresas públicas, as tentativas de censura constantes, são esse algo de Eslávia que há em Portugal. É por isso que estamos a ser ultrapassados por países que ainda há duas décadas eram muito mais pobres do que nós. Eles fizeram reformas políticas e económicas, nós não. Como diria Scolari, «e o burro sou eu?».
Coloca o comunismo a par de outros totalitarismos?
Foi o próprio Parlamento Europeu que equiparou o Comunismo ao Nazismo. E todos os partidos da Esquerda democrática votaram a favor. Por acaso, estou agora a ler "Tudo Passa", de Vassili Grossman. Quem ler aquelas descrições das fomes do Holodomor, com crianças a morrer à fome e pais a comer os filhos, e continuar a pensar que o Comunismo foi uma coisa boa que correu mal, tem um sério problema moral. Este foi, aliás, o problema de todos os intelectuais e artistas de Esquerda - de Picasso a Sartre - que toleraram ditadores como Estaline, Mao, Fidel Castro e companhia..
Como explica a condescendência de que o comunismo ainda goza em alguns círculos, sobretudo culturais e intelectuais?
Se o Estado Novo tivesse sido uma ditadura comunista, os mesmos intelectuais e artistas que simpatizam com o marxismo seriam hoje anticomunistas, tal como sucedeu nos países de leste. Sem referências democráticas, a geração que lutou contra o Estado Novo guinou à Esquerda, aceitando o Comunismo como uma forma de democracia, e passou esses valores à geração seguinte. E passou também a ideia maniqueísta de que a Esquerda é boa e a Direita é má. Isto é pueril e cómico, próprio de uma criança de cinco anos, mas está enraizado nos círculos da cultura nacional. É por isso que os principais jornalistas e comentadores apoiam, sempre, sem reservas, o Partido Socialista. Podem acontecer bancarrotas, Sócrates e outros imitadores menores, sermos ultrapassados e ficarmos cada vez mais pobres, a TAP, que nada os demove. E também não se perturbam com o apoio do PCP e do BE a ditaduras. A Esquerda é boa e a Direita é má - "me Tarzan, you Jane". O horror ao liberalismo é tal que lhes tolda a inteligência. Será que não se interrogam por que motivo os imigrantes e os refugiados só querem ir para a Alemanha ou os Estados Unidos?
De todas as características associadas aos regimes comunistas, quais lhe parecem os mais aviltantes?
Todas as ditaduras negam ao ser humano os seus direitos fundamentais. Todas as ditaduras são um crime. O Comunismo não foi apenas responsável por cerca de 100 milhões de mortes. Privou de liberdade um terço da humanidade. Fechou as pessoas num gigantesco campo de concentração e impediu-as de decidir o seu destino, por exemplo emigrar. E ao mesmo tempo dizia que as estava a salvar, a construir um futuro melhor, o paraíso na Terra.
Este é um romance não com um, mas com 38 protagonistas. Porque optou por este modelo, no mínimo, invulgar?
Não poderia criar um país e a sua sociedade com poucas personagens. Comecei por fazer uma lista para eu próprio não me perder. Primeiro, vieram os Comissários do Povo e as suas famílias, a seguir a polícia e os guardas do campo de concentração, depois as vítimas do regime, os resistentes e, por fim, os oportunistas. Além disso, havia dois temas que à priori queria incluir na história: o abuso de menores num orfanato, e o não sabermos quem é o nosso pai (a busca da personagem Sílvia). Uso ainda a pergunta de Pilatos a Jesus «o que é a verdade?» para levar as personagens, e o próprio leitor, a se interrogar sobre os acontecimentos. Perestroika não é um romance de propaganda. Há personagens que defendem os valores do Comunismo e fazem críticas certeiras ao Capitalismo. A Comissária do Povo para a Educação, Helena Yava, é uma marxista imaculada. Se há alguém bom no romance, é ela. Atrevo-me a pensar que até o Comité Central do PCP poderá ler "Perestroika" sem se indignar. Mais do que um romance político, "Perestroika" é uma história sobre a natureza humana que aborda os principais temas da literatura: a ascensão e a queda, a luta pelo poder e pela sobrevivência, a busca da verdade, o amor, a vingança e a possibilidade de redenção. Por isso, com as devidas alterações, o livro poderia passar-se no Estado Novo ou numa distopia do futuro.
Com tantos e tão diferentes protagonistas, como procurou manter a identidade do livro?
Uma das qualidades que aprecio nos grandes escritores é não deixar pontas soltas. No final, tudo tem de ficar bem arrumado e fazer sentido. Em "Perestroika", tentei fazer o mesmo. A maior dificuldade foi conseguir concatenar as ações de todas as personagens, ainda que isso só aconteça cem páginas depois, e nunca deixar nenhuma delas perdida. Na primeira parte do livro, as personagens evoluem num regime ditatorial. Na segunda, experimentam a liberdade e a possibilidade de vingança. Estão sempre relacionadas umas com as outras. E, no final, conto surpreender o leitor com um twist inesperado.
Uma das suas críticas recorrentes diz respeito ao alegado peso excessivo da esquerda na vida pública portuguesa, até na comunicação social. Como se manifesta esse desequilíbrio, na sua opinião?
Basta ler os editoriais dos principais jornais, assistir a análises sobre debates eleitorais, ou então ver o programa "O Eixo do Mal", onde todos os comentadores são de Esquerda. Clara Ferreira Alves é a rara voz que procura a equidistância política.
Já por mais de uma vez teceu duras críticas ao modo de funcionamento do meio cultural português, que considera ser "uma coutada de amigos". Em que radica essa convicção?
Estou traduzido para inglês, francês, italiano e espanhol. Estou publicado em oito países. Venci quatro prémios literários nos EUA, um dos quais já foi patrocinado pela Amazon, e um prémio de conto em Itália. "The Tragedy of Fidel Castro" foi considerada a terceira melhor tradução publicada nos EUA pela "Foreword Review". Há dias, o conto "We Still Have Putin" foi nomeado para o Spillwords Awards 2022. Porque será, então, que o "Público", o "Expresso", a "Visão", o "Jornal de Letras", a revista "Ler", a Antena 2, a Lusa nunca noticiaram nada disto? Os emails que lhes envio vão todos para o lixo. Um português vencer prémios nos EUA - o país mais competitivo do mundo - não merece duas linhas? Se noticiam que portugueses - com o todo o mérito - venceram prémios de pizzas e bolos, por que ignoram os prémios literários? Porque eu não pertenço à coutada dos amigos e amigas que, não por acaso, estão alinhados ideologicamente ou, então, não emitem opiniões políticas.
Ser intelectual de direita em Portugal implica ter uma resistência especial?
É viver num regime de apartheid ideológico. Sofrer preconceitos. Ser obrigado a demonstrar que não se é um patife. Direitofobia é a palavra certa. Convido o leitor a fazer a seguinte experiência: vá para as redes sociais defender o liberalismo, afirmar que o Socialismo nunca resultou em lado nenhum e denunciar os crimes do Comunismo. Até o comem vivo.
Os seus romances partem sempre de um pressuposto invulgar. Qual a relação que a sua literatura procura ter com a realidade?
Ainda que por vezes recorra à fantasia, os meus livros abordam sempre temas atuais. Escrevo sobre a natureza humana e tento abordar a sua complexidade. Para tal, recorro à sátira e ao humor. Para que "Perestroika" não fosse um romance demasiado duro, criei Monsieur Foucault, o cônsul francês na Eslávia que aproveita a mudança de regime para ganhar dinheiro com filmes pornográficos à custa das mulheres da Eslávia. No final, um do seus filmes, "A Perestroika na Cama", vai ser exibido como uma obra de arte numa exposição sobre a liberdade.
De Jesus Cristo a Fidel Castro, passando pela galeria de personagens de "Perestroika", parece ter uma predileção especial por figuras fortes. A que se deve esta atração?
A escolha do tema e das personagens é muito importante para chamar a atenção do leitor. O escritor tem de apanhar o ar do tempo. "A segunda vinda de Cristo à Terra" resulta de ter tido uma educação católica. Mas, na verdade, Jesus acaba por ser uma personagem secundária. A moderna Madalena, ativista ambiental e das causas raciais, é que o conduz ao longo do livro. Já "A Tragédia de Fidel Castro" resulta das três viagens que fiz a Cuba. E Jesus entra no livro para parodiar o milagre de Fátima.