Em boa parte dos filmes da Berlinale a realidade é invadida pelo misterioso.
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Poderá, ou não, ser uma tendência do cinema contemporâneo. Mas a verdade é que, sem esquecer a realidade que nos rodeia, algo que a programação da Berlinale historicamente sublinhou, muitos autores contemporâneos, mesmo jovens que agora estão a dar os seus primeiros passos, encontram no cinema de género, ou na sua integração num quadro mais realista, uma consistente forma de expressão.
Olhe-se apenas para a competição pelo Urso de Ouro. Já aqui salientáramos, como grande candidato até ao momento, o brasileiro “O Último Azul”, de Gabriel Mascaro. Além da quase distopia da situação central de colocar os idosos de mais de 75 anos em colónias, é na fuga da protagonista pela Amazónia que irá encontrar o tal “último azul”, do título, num líquido que alguns caracóis expelem e que, colocado em gotas na vista, nos fazem ver outros mundos possíveis.
Em “If I Had Legs I’d Kick You”, de Mary Bronstein, com Rose Byrne e um inesperado Conan O’Brien, uma mulher confronta-se com a sua própria incapacidade de lidar com a realidade, revelada nas sessões com o seu psiquiatra, enquanto a filha sofre de uma estranha doença e parecem haver seres misteriosos no andar de cima da sua casa.
Passando para a Argentina, “El Mensage”, de Iván Fund, tem como protagonista uma jovem que parece ter o poder de falar com a alma dos animais, sendo como tal explorada pelos familiares que se ocupam dela. Filmado a preto e branco só porque sim, e com uma banda sonora insuportável, a que se junta a cover dos Pet Shop Boys de “You’re Always in My Mind”, o filme também não convenceu.
O mesmo aconteceu com “Mother’s Baby”, de Johanna Moder, versão austríaca e muito pobre do clássico “Rosemary’s Baby”, de Roman Polanski. Aqui, uma casal que não consegue ter filhos recorre a uma clínica especializada, mas depois do bebé ser retirado da mãe após o parto e de lhe se entregue apenas no dia seguinte, toda a gente percebe que algo de errado se esconde por detrás da clínica. Mais de meia-hora depois percebe-se, mas num final absolutamente paptético de inverosimilhança.
Poderíamos ainda retomar outros títulos da competição enformados pelo cinema de género, como o belga “Reflet dans un Diamond Mort”, filme de ação e espionagem, em homenagem ao género e muitos outros momentos da cinefilia coletiva, de James Bond aos policiais italianos. Ou o chinês “Girls on Wire”, drama familiar onde as filmagens de cenas de ação, com jovens atrizes a voar agarradas por cabos, é um dos principais elementos dramáticos. Ou ainda a versão negra do conto de fadas no francês “La Tour de Glace”, com Marion Cotillard na Rainha da Neve.
Ainda nos filmes da seleção oficial competitiva, salva-se a produção germânica “What Marielle Knows”, de Fréderic Hambalek, onde uma jovem adolescente, após receber uma forte chapada na escola, passa a ter o poder especial de saber exatamente o que o pai e a mãe disseram ao longo do dia. Descobre assim que a mãe talvez ande a enganar o marido e que o pai não é a boa pessoa que parece em casa. Mais do que este lado “fantástico”, o filme é uma observação sobre o casal no mundo contemporâneo e até onde será a verdade absoluta o principal suporte de um matrimónio.
Mas esta talvez tendência para o fantástico estende-se a outros filmes exibidos em secções paralelas. Apenas para referir dois títulos que têm estreia garantida e que demonstraram qualidades acima dos que concorrem pelo Urso de Ouro, refiram-se “The Thing with Feathers”, primeira obra do britânico Dylan Southern e endossado por um surpreendente Benedict Cumberbatch, num pai que ficou sozinh com os dois filhos pequenos depois da morte da mãe e tem de lutar não sõ com a dor como com a presença física da morte, representada por um imenso corvo com a voz de David Thewlis, ou “The Ugly Stepsister”, também filme de estreia da norueguesa Emilie Blichfeldt, versão muito negra da história de Cinderella.
Esperemos então pelos filmes de Richard Linklater, Radu Jude ou Hong Sangsoo, para que a competição de Berlim 2025 salve a sua honra.