Após longas 27 horas de viagem, contando com ligações aéreas perdidas e voos atrasados, chega-se finalmente a Gramado, cidade que cumpre agora as 50 edições do festival de cinema, um dos mais importantes e míticos da América Latina e com um forte historial associado ao cinema brasileiro do último meio século.
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O que não se esperaria é que, no meio de uma calorosa receção por parte de toda a equipa do festival, quando se começa a saber algo mais, agora in loco, sobre este local tão maravilhoso, tão cheio de História mas também tão longínquo, nunca imaginaríamos que nos fosse confiado - talvez alguns já o soubessem, claro - que Kátia Aveiro, a irmã de Cristiano Ronaldo, tem residência no Gramado, onde casou com um seu cidadão, tendo já nascido aqui o filho do casal. Mais, em 2018 abriu um restaurante, Casa Aveiro, nessa data associado até do próprio festival, mas que, infelizmente, viria a fechar com a pandemia não tendo ainda reaberto.
Este facto trivial coloca-nos no entanto em pleno raccord com o primeiro filme a que pudemos assistir, "9", dos uruguaios Martin Barrenechea e Nicolás Branca. É que, além de se passar no meio do futebol, a personagem central, um jovem jogador, chama-se Christian! A inspiração para a trama do filme surgiu no entanto quando o uruguaio Luis Suárez mordeu o italiano Chiellini, durante uma partida do campeonato do mundo de 2014.
O Christian do filme teve também uma reação desmesurada contra um adversário, num encontro na Colômbia e encontra-se agora sem clube. Na casa de luxo em que vive, uma verdadeira personagem do filme, o pai tenta encontrar-lhe um clube em Inglaterra, onde poderá continuar a sua carreira. Falhada a transferência, o pai, também seu empresário, descobre um clube chinês, capaz de o contratar apenas por um ano e a troco de vários milhões.
Mas Christian, assediado pelos media e a descobrir ao mesmo tempo que há vida para lá do futebol, descobrindo num campo de ténis uma jovem vizinha com que é introduzido no sexo, na dança e em outros vícios que fazem parte da vida, decide tomar uma decisão drástica...
Além de nos mostrar o outro lado da existência de jovens astros, que não conseguem ter uma vivência normal, sendo que os brasileiros com quem falámos depois do filme identificaram bastante a personagem com Neymar Jr., o filme tem imensas qualidades visuais e narrativas, mostrando-nos a vitalidade de uma das cinematografias da América Latina menos conhecidas e o ator principal, Enzo Vogrincic, uruguaio de origem esloveno, capta-nos desde o início com todo o seu carisma. Apesar de não ter uma única imagem de futebol, dispositivo inteligente e adequado à história, "9", vencedor já de alguns prémios internacionais, é um filme que merecia ser estreado em Portugal. À atenção dos nossos distribuidores.
Curiosamente, o clube anterior da personagem de Christian jogava na liga portuguesa. Em conversa com um dos realizadores Nicolás Branca assumiu que todos os uruguaios sabem tudo de futebol desde a nascença e explicou-nos a razão da escolha de Portugal como o destino inicial de Christian: "O Benfica foi uma das nossas referências. A camisola que o Christian usa foi inspirada na do Benfica. Sabemos de todos os jogadores uruguaios que passaram pelo clube, como recentemente Darwin Nuñez. Quando jogadores jovens uruguaios vão para a Europa, em muitos casos vão para o futebol português, para depois saltarem para ligas mais competitivas."
Antes da projeção, tivemos oportunidade de observar a empatia da cidade, apesar da sua pequena dimensão, com pouco mais de trinta mil habitantes, com o festival e com as estrelas que aqui são homenageadas. A passadeira vermelha, antes de entrar pelo Palácio do Festival, atravessa uma rua pedonal, com cafés e restaurantes dos dois lados. Foi por aí que passou Marcos Palmeira, com centenas e centenas de pessoas de todos os lados a gritar o seu nome, a pedir autógrafos e selfies e verdadeiramente emocionadas por ver de perto o seu ídolo, com mais de 40 anos de carreira, espraiada pelo cinema ("Memórias do Cárcere", "Carlota Joaquina, Princesa do Brasil") e pela televisão, encontrando-se neste momento no ar a nova versão de "Pantanal".
Depois de colocar as suas mãos numa lápide que vai fazer parte do "Passeio da Fama" que se estende pela avenida principal da cidade, e de receber o troféu do festival, o Oscarito, Marcos Palmeira disse: "Quando me falaram nesta homenagem, fui fazer uma reflexão profunda sobre a minha existência, pelos caminhos que me trouxeram até aqui. E Gramado deu-me tanta coisa, não só os vários prémios que conquistei, mas toda a minha relação com o cinema e com a política cultural."
Sinto-me ainda em princípio de carreira, tenho tanta coisa para fazer, tantos caminhos, tantas personagens que quero viver
Já visivelmente emocionado, continuou: "O trabalho de ator no cinema brasileiro é muito difícil, a luta é constante. Eu nasci no cinema, vivi dentro de uma produtora de cinema. Fiz quase tudo no cinema, antes de começar a atuar. Agradeço ao Gramado o amor de todas estas pessoas. Mas eu sinto-me ainda em princípio de carreira, tenho tanta coisa para fazer, tantos caminhos, tantas personagens que quero viver."
O ator, empenhado em várias causas pelos índios indígenas e pelo ambiente, recordou o seu início de vida: "O meu trabalho foi fazer o som com um realizador que me convidou para ir filmar índios isolados no Pará. Eram para ser quatro dias, ficámos vinte e oito. Embrenhei-me completamente naquela comunidade. Foram momentos de troca. Eu explicava-lhes como era a vida numa cidade como o Rio de Janeiro. E foi essa experiência que me levou a ser ator."
Mas o festival começou com outra forte ligação a Portugal. Primeira longa-metragem da competição brasileira, "O Clube dos Anjos" adapta o romance de Luis Fernando Veríssimo tem como realizador Angelo Defanti, que já dirigira um documentário sobre o escritor, intitulado simplesmente "Veríssimo".
O filme acompanha um grupo de velhos amigos que retoma o hábito de se encontrar para jantar quando conhece um cozinheiro misterioso. Após uma noite mágica de gula e prazer, um deles aparece morto. Nada que impeça os amigos de retomar o seu ritual, organizado à vez por cada um deles...
"O Clube dos Anjos" é afinal, descobre-se aqui no Gramado, um dos mais recentes casos de coprodução entre o Brasil e Portugal, com a parte portuguesa assegurada pela Ukbar Filmes, de Pandora da Cunha Telles. António Capelo é um dos atores principais, Rui Poças, para quem a equipa do filme não poupou elogios, foi o diretor de fotografia e todo o trabalho final de som foi feito em Portugal.
Ao JN, o realizador do filme, questionado sobre a importância para o cinema brasileiro da conquista do Leopardo de Ouro por "Regra 34", anunciado praticamente em cima da abertura do Festival de Gramado, referiu que "o Brasil está a produzir muito bem e este prémio vai abrir ainda uma brecha maior".
Já Sara Silveira, a produtora do filme, confessou-nos que Pandora da Cunha Telles é uma "amiga do peito" há muitos anos. "Todos os filmes que faço em Portugal são com ela", diz-nos. "Gosto muito do Urbano, de O Som e a Fúria, mas não consigo dar-lhe um filme para fazermos juntos. A Pandora trouxe-nos esse ator e muitos elementos da equipa técnica e eu vejo como muito importante essa participação internacional dos nossos filmes nacionais. Juntar-nos com Portugal já é um pezinho na Europa. Estas coproduções fazem-nos sonhar em chegar a Cannes, Berlim e Veneza. A Pandora é a minha eterna parceira portuguesa, ela trabalha muito bem", conclui.