Chico Diaz falou ao JN sobre o seu regresso em breve a Portugal.
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Foi um regresso a um festival onde, em 1999 e com o seu primeiro filme, "A Sombra dos Abutres", venceu três Kikitos, entre os quais o de melhor filme da competição internacional. Mais de duas décadas passadas, Leonel Vieira está de volta à competição internacional com "O Último Animal", uma coprodução luso-brasileira mas integralmente filmada no Rio de Janeiro e com Joaquim de Almeida num dos principais papéis.
O ator português interpreta uma personagem conhecida como o Dr. Ciro, o chefe do centenário mas ilegal Jogo do Bicho, uma espécie de loto clandestino que movimenta milhões, sobretudo nas favelas e nas zonas mais desfavorecidas da "cidade maravilhosa", que a câmara de Leonel Brito capta apenas de longe.
Pelo contrário, o filme penetra bem por dentro da favela e do circuito da cocaína, da violência dos gangues, da corrupção policial, do sexo como moeda de troca. Tudo em torno de um jovem negro que vive com a avó e sonha sair da comunidade e melhorar o seu nível de vida. Só que os caminhos que o guião de Leonel Vieira tece o leva a trabalhar para um bando associado aos cartéis de Miami, ao mesmo tempo que o facto do seu irmão ser um dos chefes de gangue da favela atrapalha a sua ascensão social, Ciro só tem uma opção...
O filme de Leonel Vieira tem tudo o que se possa imaginar num drama social passado numa favela do Rio. É a sua opção dramática, que combina com um tipo de filmagem de guerrilha, preocupando-se menos com a estética, com o posicionamento da sua câmara e das personagens que com o ritmo da sua narrativa, acompanhada por uma banda sonora que também nunca nos larga. Uma produção brasileiro-portuguesa afinal, mais do que o contrário, mas que poderá encontrar o seu público nos dois países e também no internacional.
O festival, que homenageou Joel Zito Araújo, um dos realizadores que mais trabalhou o cinema dos negros brasileiros e que, no seu emocionado discurso, celebrou os seus antepassados, sem esquecer os portugueses que se encontram também na sua árvore genealógica.
As outras competições continuam a sua programação diária e um dos títulos que mais impressionou até agora foi "Noites Alienígenas", rodado no pequeno estado do Acre, em plena floresta amazónica e fazendo fronteira com o Perú. O filme tem realização de Sérgio de Carvalho, que adapta a sua própria obra literária e se estreia aqui na realização de longas-metragens, depois de vários documentários televisivos.
Mas Sérgio de Carvalho demonstra uma enorme maturidade cinematográfica. Numa região de difícil acesso, onde algum material demorava uma semana a chegar, tendo de percorrer seis mil quilómetros, o filme centra-se também numa periferia urbana, onde os jovens são atraídos pelos bandos e pelo dinheiro fácil da venda de droga.
O autor cruza uma mãe solteira, o filho que está à beira de se perder, o antigo companheiro, esse já completamente perdido, um homem que apela à cosmogonia e as práticas ancestrais de limpeza e purificação da alma. Nunca caindo no facilitismo, com um domínio completo da narrativa, uma qualidade fotográfica que se poderia pensar impossível de alcançar com nas condições de rodagem que se encontrou, uma componente musical muito forte mas que nunca se impõe ou sobrepõe e sobretudo personagens tão humanas, tão profundas nas suas contradições, o filme é, apesar do seu lado trágico, um grito também de esperança.
Juntando não atores, com profissionais, nunca se percebendo bem quem são uns e outros, o filme tem como presença mais conhecida a do já lendário Chico Diaz, que protagonizou ainda não há muito "O Ano da Morte de Ricardo Reis", adaptação de Saramago por João Botelho. Reencontrando o ator em Gramado, falou-nos com entusiasmo deste seu filme, que o levou a um território tão estranho e longínquo, mesmo para os brasileiros, sublinhando "a narrativa muito moderna, de um filme que vem de onde vem" e falou-nos de um projeto que vai apresentar muito em breve em Óbidos.
"A minha relação com Portugal começou quando fui fazer "Biografia de um Poema", de Drummond de Andrade, no Teatro do Bairro, com o António Pires. Naquele núcleo, o João Botelho, o António Pires, o Alexandre Oliveira, puxaram-me para fazer "O Ano da Morte do Ricardo Reis", recorda. "Depois voltei para fazer o "Vermelho Monnet", de um realizador brasileiro e agora fui fazer "O Rei Lear" no Teatro Ibérico", provando ser Chico Diaz o mais português dos atores brasileiros da atualidade. Convém apenas salientar que o ator nasceu no México, em 1959, filho de um diplomata paraguaio, tendo vivido grande parte da infância no Perú, antes de se instalar definitivamente no Brasil, em 1969.
Mas a relação de Chico Diaz com o nosso país ainda não vai parar. "Há uma ponte profissional possível para mim em Portugal", confirma-nos. "E a Celeste Afonso, uma curadora de arte, juntamente com a Mirna Queiroz, da revista Pessoa, viram as minhas pinturas e convidaram-me para participar agora na Festa do Pensamento, em Almada, com a Inês de Medeiros. Estão a fazer um projeto em torno da Utopia, que vai juntar performances da Europa inteira em Óbidos, na entrada da Feira Literária."
Chico Diaz explica-nos então o que vai acontecer em breve. "Vou ter uma residência de três semanas no Bom Sucesso, para criar uma obra dramatúrgica a apresentar no dia 12 de outubro. Achei o desafio muito interessante. Estou a pensar como é que nós criadores podemos criar frente ao que nos destrói. Há uma iminência de um final, térmico, nuclear. Como é que nós podemos construir histórias e narrativas. Comecei a pensar numa narrativa de busca e fuga baseada no mito do teto sem males dos guaranis, que é sempre um lugar utópico. Nós não podemos ficar aqui, porque temos um lugar melhor para chegar."
O ator conclui a explicação do que parece desde já um trabalho fascinante, muito contemporâneo e altamente prometedor do ponto de vista artístico e filosófico: "Estou também a trabalhar na ideia da necessidade de conhecimento. Será que o conhecimento, frente ao desconhecido, é útil? O "eu", que sei tanto academicamente, consigo lidar com o que vem por aí? São questões que vou colocar em cena sozinho, em algumas telas de projeção e com algumas camadas sonoras. Mas a discussão será um pouco essa, se eu procuro ou se eu fujo.